Felipe Miranda: A vida é bela? Mesmo com o Plano Anti-Mansueto?
Eu gosto do Roberto Benigni. Cláudio não gosta. Para mim, o Cláudio às vezes se confunde com o Ray Dalio da teoria psicanalítica, defensor de uma espécie de transparência radical.
Um jeito de ser e estar no mundo em que se dispõe a encarar a realidade, tal como ela é, sem também magnificar as mazelas do dia a dia e afastando qualquer preconceito advindo de uma moralidade convencional, sob, deliberadamente, a epoché da fenomenologia, a suspensão dos julgamentos. Talvez Nietzsche estivesse certo: o valor de um homem pode ser medido pelo tanto de verdade que ele pode suportar.
Em sendo o caso, “A vida é bela” — o filme do Benigni em que um homem tenta proteger seu filho durante sua estadia em campo de concentração nazista, tratando o Holocausto como uma fantasia, algum jogo elaborado cheio de regras a serem seguidas — realmente perde parte do charme.
Se você não ensina frustração a seu filho, pintando-lhe um mundo cor-de-rosa, como se vivêssemos na Disney, ele não estará preparado para enfrentar as adversidades da vida. A pretensa proteção precede a posterior fraqueza, a insegurança e a vulnerabilidade extrema. Dourar a pílula não muda seu conteúdo interno.
Eu gostaria de enxergar uma vida bela para os investimentos de risco neste momento. Mas seria certo? Não que isso queira dizer que eu enxergo uma vida não bela para os investimentos de risco.
Deixe-me qualificar um pouco melhor as coisas.
Tenho tentado manter uma discussão um pouco menos superficial e maniqueísta sobre as coisas. O mundo não se divide em preto e branco, ultraconservador ou ultra-arrojado, 100% renda fixa ou 100% ações (ou até mesmo alavancado em ações).
Defendo a necessidade de se manter uma ótica mais cautelosa e focada na preservação do capital em âmbito sistêmico, ao mesmo tempo em que se aproveitam oportunidades pontuais para ganhos de capital de longo prazo, em grande medida sob abordagem idiossincrática e microeconômica (não sistêmica). Em nenhum momento, essa aparente dicotomia representa um paradoxo. As duas coisas podem — e devem até — caminhar juntas. Com efeito, elas são complementares.
Vou rapidamente falar sobre minha postura cautelosa em relação aos ativos de risco em âmbito de risco, que se traduz na manutenção de uma possível posição recomendada inferior à nossa média histórica em ações (atualmente, posição líquida comprada em 11,75% da Carteira Empiricus) e numa alta exposição em dólar e ouro (30% do portfólio).
Destarte, lembre-se de que a Bolsa brasileira tem negociado com grande correlação frente às Bolsas internacionais. Isso não é uma hipótese ou uma elucubração, apenas observação empírica. Diante de uma crise global, somos guiados por referências globais. Não chega a ser surpreendente.
Portanto, olhemos um pouco para os EUA. A verdade é que não enxergo uma assimetria muito convidativa, tampouco a margem de segurança necessária, para indicar uma posição muito grande em Bolsa americana — adianto: isso não significa que você não deve ter nada de ações dos EUA; o argumento é de que deve fazê-lo sob o devido “sizing” (dimensionamento adequado da posição; no caso, pequena) e com seletividade (tenho preferência por ações de tecnologia, mais capitalizadas, mais resilientes e prontas para sair da crise ainda mais fortes; boa combinação de risco e retorno).
Poderia sintetizar o ceticismo quanto a uma apreciação muito vigorosa de Wall Street a partir da seguinte argumentação:
Nós não sabemos qual será o tamanho do impacto sobre a economia e sobre os lucros corporativos do lockdown atual — as estimativas apontam para uma retração da ordem de 30% no trimestre; a Goldman Sachs, por exemplo, projeta -35% e há quem estime até -40%.
Talvez o leitor mais crítico pudesse apontar que isso é apenas um trimestre e não seria tão relevante para fins de avaliação de empresa (mais tecnicamente: o impacto de um fluxo trimestral num modelo de DCF seria pouco representativo).
De fato, é um ponto interessante, mas que nos leva a outro questionamento: quando será a volta do lockdown? E de qual jeito? As empresas voltarão parcial ou integralmente? Quem voltará primeiro? Será que a hipótese de Neel Kashkari, do Fed de Mineápolis, faz sentido e teremos 18 meses de “rolling shutdowns”?
Ou seja, sairemos para a rua, contaminaremos e imunizaremos parte da população e depois voltaremos para casa? Qual é o efeito dessas idas e vindas sobre a economia? Haverá uma segunda grande onda de contágio, tal como ocorreu com a gripe espanhola, ou chegará uma vacina a tempo?
E avancemos um pouco para o médio prazo, assumindo que já tenhamos superado a fase da crise humanitária e de saúde. Qual é o legado disso tudo? Sairemos com uma taxa de desemprego próxima a 20%, com um monte de empresas zumbis salvas pelo governo, mais endividadas e com redução da produtividade geral da economia.
Como ter uma recuperação da economia, dos lucros corporativos e, portanto, um bull market consistente com 20% de desempregados, mediante tanta destruição de renda e de riqueza? Resolvemos a crise em 45 dias? Teremos um bear market agora tão diferente dos anteriores, sendo endereçado em três semanas e testando o fundo apenas uma vez? Ou esse seria apenas um bear market típico, com vários meses para se resolver a questão de fato?
Além disso, será que podemos mesmo já contar com a efetividade da Moderna Teoria Monetária? (Para dúvidas, ler o Day One de ontem.) Não haverá qualquer consequência da impressão ilimitada de dinheiro?
Será mesmo que não estaríamos diante de um fenômeno de armadilha de liquidez e “japanização” do mundo, em que seremos condenados a viver com baixíssimas taxas de crescimento por razões estruturais (demografia e tecnologia), que resultam em altas taxas de poupança e nos levam à tal estagnação secular?
Por fim, claro, temos a questão do valuation. Nem precisamos sofisticar muito a coisa. Fiquemos com alguns heurísticas bastante simples. Não lhe parece, no mínimo, curioso o fato de que, mediante à segunda ou terceira maior crise (tanto faz) em mais de cem anos, o S&P 500 caia menos de 5% em 12 meses? Da minha parte, quando vejo o Ifix subindo nesse intervalo de tempo, tenho calafrios. O cenário para imóveis é hoje melhor do que fora há 12 meses, mesmo diante de uma crise dessas?
Vamos olhar de outro jeito. As estimativas de consenso, de acordo com o FactSet, hoje apontam para um lucro de US$ 152,81 para o S&P em 2020 e de US$ 178,03 em 2021.
Isso implicaria um múltiplo de 18,3 vezes lucros para este ano e de 15,8 vezes para o próximo. Já seriam métricas superiores a qualquer outra recessão — a menor relação das recessões foi atingida na era Volcker, por conta dos juros altos, em 6 vezes; os mais altos foram vistos no bear market de 2002/03, em 14 vezes, enquanto a média os mercados de baixa de 1987, 1990, 2009 e 2011 viram P/Ls de 10 vezes. De novo, há algo tão especial nesse bull market para fazer os múltiplos serem tão superiores a todos os anteriores?
Um olhar mais criterioso pode tornar as coisas piores. O consenso de lucros projetados para o S&P 500 engloba algumas estimativas que ainda não foram revisadas — em função de falta de tempo e também pela incerteza sobre o futuro da economia e dos lucros.
Tudo aconteceu muito rápido e os analistas do sell side são tipicamente mais demorados do que o buy side. As atualizações mais recentes apontam para lucros inferiores a esse do consenso para o S&P, algumas delas em torno de US$ 120 para este ano (note que há ainda enorme incerteza sobre os lucros, dado que ninguém sabe como as coisas serão daqui para a frente). Em sendo o caso, estaríamos pagando nada menos do que 23,3 vezes para os lucros do S&P neste ano, algo sequer comparável a qualquer outro período de recessão.
“Ah, mas é porque o mercado está olhando o lucro de 2021.” Mas qual lucro? Estamos projetando uma enorme recuperação sem a menor garantia de sua materialização. Justamente por conta da incerteza típica de recessões que demandamos múltiplos menores para comprar ações (maior prêmio de risco, visto de outra forma). Volto à pergunta inicial: como ter forte recuperação de lucros com 20% de desemprego?
Então, chegamos ao Brasil, que já entrou nesta crise com alto desemprego e em situação fiscal preocupante. Uma das coisas que sustentavam o prognóstico de bull market estrutural era a agenda de reformas fiscais que, adequadamente, o governo Bolsonaro vinha executando, dando continuidade ao trabalho iniciado por Temer.
Agora, todos viramos keynesianos, sob o slogan populista de “nenhum brasileiro será deixado para trás”. Gastos extraordinários deveriam mesmo ser aprovados, diante da situação extraordinária vivida. Contudo, como lembra Friedman, não há nada tão recorrente quanto um gasto transitório do governo. O pior: aproveita-se de um cenário de extrema dificuldade para relaxar questões estruturais (sim, estruturais) de nosso acordo fiscal.
O tal “Plano Mansueto” aprovado ontem na Câmara é qualquer coisa menos o verdadeiro “Plano Mansueto”. Ao contrário, ele deveria ser batizado de “Plano Anti-Mansueto”.
A proposta original era de dar socorro a Estados e municípios com importantes contrapartidas fiscais, que pudessem endereçar estruturalmente o problema do endividamento crescente. Aprovou-se justamente o oposto: um pacote de resgate sem qualquer contrapartida. É a subversão completa. Na minha opinião, uma afronta ao nome do brilhante Mansueto.
Cada vez mais, me preocupo com nossa moeda e nosso juro longo. Para o caso brasileiro, ao menos, Ray Dalio pode estar particularmente certo: “cash is trash” (caixa, em reais, pode ser uma grande roubada).
Por isso, tenho preferido vasculhar oportunidades pontuais e idiossincráticas, blindadas do ambiente sistêmico desafiador. Empresas sólidas, com balanço robusto, previsibilidade de resultados, management competente, margem alta, baixa alavancagem, alto retorno sobre capital investido, posição de reconhecida liderança setorial, com vantagens competitivas claras e altas barreiras à entrada.
Se puder juntar a isso indicações de insiders (pessoas de dentro da companhia; não no sentido pejorativo da palavra insider) comprando, pode ser uma das melhores pistas de atratividade dos papéis no momento.
Acho que poucas vezes na minha vida vi uma 358 tão agitada quanto essa última. Aqui vai uma listinha bacana para servir de guia, de algumas que me chamaram a atenção: Minerva, com controlador comprando alavancado, com preços entre R$ 7,06 e R$ 8,14; Randon, com recompra de 13 milhões de ações (7,4% do float em seis meses); Cosan, com 2,97 milhões de ações em março — se somar buyback, dá 5,5% do float; Camil, com controlador comprando 420 mil ações ao preço de R$ 6,90; BTG, com buyback de 2,85 milhões de ações, Localiza, com recompra de 5,2 milhões de ações.
Entre Roberto Benigni e Woody Allen, ainda fico com o segundo. A vida pode não ser bela, mas ainda é o único lugar em que podemos comer um bife.