Opinião

Felipe Miranda: 1984

26 jun 2019, 10:50 - atualizado em 26 jun 2019, 10:51

Às vezes, eu queria só voltar para “as coisas mesmas”. A “epoché” de Edmund Husserl, sabe? Em que os fenômenos falam por eles mesmos, sem que a gente fique interpretando conforme nossos vieses, nossa ideologia e nosso humor momentâneo.

Zema propõe fim da obrigatoriedade de referendo para privatizar a Cemig

O julgamento do habeas corpus de Lula no STF virou Fla-Flu. Não mais se pensava na coisa em si. Gestores e analistas foram inflados de paixão, colocando quase tudo a perder. “O cara vai ser solto e vão melar a reforma.” Ouvi na academia, te juro. Será que podemos separar análise de torcida? Agora acham que acabou a onda de IPOs, é isso? Ora, eu acho que você deveria participar de Neoenergia (hoje é o último dia para reservar ações; tem publicação completinha sobre a oferta na Área do Assinante).

Blindar-nos de nós mesmos nas decisões de investimento é uma das tarefas mais difíceis. Contra os outros é sempre mais fácil lutar. E não me venha com a ideia de que podemos colocar computadores para nos ajudar nisso — eu não compro essa ideia.

Como resumiu Hubert Dreyfus, “os computadores são maus fenomenólogos”, ou seja, eles também não são bons em se voltar às coisas mesmas e aos fenômenos que acontecem. Acho que são piores do que nós, porque não foram treinados para capturar a interação social, a complexidade da realidade humana, a profundidade das interações. Mais ainda: não lhes é natural a interpretação das coisas mais triviais da experiência humana, que, no fundo, são as que interessam.

Nunca vão saber o gosto do café da Dona Graça às 7h04 da manhã, nem desfrutarão de um simples banho quente, tampouco receberão a notícia da gravidez de sua esposa.

Para mim, estamos em vantagem nessa — e eu sei que ficaria mais bonito e descolado se me colocasse como um tecnólogo; talvez aumentasse o valuation da Empiricus se eu insistisse no discurso de fintech e disrupção. Às favas com valuation! Somos diferentes da máquina porque nascemos nadando na complexidade perceptiva e conceitual das tarefas humanas essenciais, na “exuberância da vida e das relações”, para usar o termo de E. M. Forster.

O bom investidor é aquele capaz de acertar o convívio com as ambivalências. Todos queríamos um excelente retorno com risco zero. Infelizmente, não dá. Sonhamos com uma economia mundial bombando e taxas de juros muito baixas. Acordamos com a dúvida se a ação dos bancos centrais será suficiente para sobrepujar os efeitos danosos da desaceleração global ao injetar liquidez no sistema.

Qual é o limite entre o teimoso e o perseverante? O quanto insisto numa tese de investimento sendo que a variação de suas cotações em Bolsa testa minhas convicções a cada dia? Pago caro pelas blue chips ou barato nas small caps incorrendo num problema de liquidez?

Achava que a tecnologia viria para irromper contra sistemas estabelecidos, derrubaria barreiras, reduziria distâncias. Assim, teríamos ampliada nossa liberdade. Temos infinita conectividade, capacidade irrestrita de armazenamento e acesso ao mundo inteiro num clique. Isso tudo é verdadeiro e é ótimo. Mas, para isso, entregamos parte da nossa privacidade e não há qualquer profundidade mais — tudo está restrito à Wikipédia e ao mundo do “one click”.

O quanto de nossa liberdade estamos dispostos a ceder para organizações empresariais gigantescas em troca de conforto e privacidade? A Netflix sabe mais de mim do que minha mãe.

Talvez esteja exagerando na projeção de um cenário distópico. Sei lá se vai acontecer ou não. Mais provável até que não. Mas então por que falo dele? Ora, se um cenário é pouco provável, mas tem um impacto brutal, ele precisa ser considerado em suas análises. Você entraria num avião cujas chances de cair fossem de 10 por cento? Nenhuma estratégia que implique risco de ruína, seja lá qual for a probabilidade de ocorrência dessa ruína, deve ser levada adiante pelo investidor.

Eu fico pensando se não caminhamos para um ambiente em que cinco empresas dominam o mundo todo. Deve ser exagero, concordo. Mas você deve ter visto a intenção do Facebook de criar uma moeda digital, né? A libra seria a primeira moeda mundial desde o padrão-ouro lá do século 19. Se as coisas derem certo, você poderá transferir dinheiro rápido e imediatamente, sem precisar passar por um banco.

Não estou falando aqui que dará certo. A verdade é que, a esta altura tão embrionária, qualquer prognóstico mais categórico, feito por quem quer que seja, seria absolutamente charlatanismo. O ponto é que aqui teríamos o verdadeiro “unbanking”.

O Facebook tem capilaridade monstruosa e conhece os dados dos usuários como poucos. A chance de isso virar uma fintech integrada, inclusive com concessão de crédito mais barato com um click (aqui o cadastro positivo ou negativo é preenchido sem a atitude deliberada do usuário, porque a plataforma conhece hábitos, disposição a pagar e capacidade financeira do sujeito), é material.

Como resumiu cirurgicamente Helio Beltrão hoje em artigo na Folha, “a libra é a primeira grave ofensiva tecnológica contra os bancos tradicionais e os cartões de crédito no Ocidente. Deverá proporcionar uma dramática redução dos custos de remessas internacionais, que perfazem mais de 600 bilhões de dólares por ano, e será um competidor de custo quase zero das TEDs e das maquininhas de pontos de venda”.

Não sei se a libra em si será um sucesso. Há vários obstáculos para isso. E os reguladores estão adorando a ideia, claro (ironia; nos dias de hoje, sempre bom esclarecer — explicar piada é uma das coisas mais chatas do mundo). Mas há um movimento nessa direção que me parece inexorável. E se o Facebook vier por esse caminho, seria natural imaginar que Google, Amazon, Netflix e Apple adotassem algo semelhante.

Em nossas decisões de investimento, estamos aqui tentando identificar o quanto as fintechs são verdadeiras ameaças aos bancos. XP, BTG, Nubank, Neon, Banco Inter, Banco Pan… ou, para aqueles um pouco mais ousados, talvez Mercado Livre… nada disso! Não seriam essas as verdadeiras ameaças e os vencedores do processo de disrupção na indústria financeira. A completa revolução pode vir de cima, com as supergigantes globais acabando com a brincadeira.

Todas as vantagens apontadas por Helio Beltrão no parágrafo aí em cima são reais. Ao mesmo tempo, não seria um pouco assustador entregarmos mais isso a essas grandes corporações?

Se a ideia de um Grande Irmão esteve historicamente associada a regimes totalitários partindo de um ente centralizador de Estado, agora pela primeira vez talvez empresas altamente eficientes e capitalistas poderiam estar de olho em você, e, no mesmo momento em que oferecem mais liberdade financeira (entre outras liberdades), restringem e induzem nosso comportamento.

Para que isso não fique como um devaneio diletante, encerro com duas proposições bastante pragmáticas de investimento:

1 – Muito cuidado com os bancos. As disrupções acontecem de repente e não são processos lineares. De súbito, kabum! Não sou xiita. Acho que você pode, sim, ter esses caras na sua carteira, mas calibre bem o tamanho das posições e esteja ciente dos riscos.

2 – Quando eu sugeri uma aposta (num percentual pequeno de seu portfólio), entre agosto e setembro de 2017, em criptomoedas, apontei como razão principal seu caráter convexo (muito mais a ganhar potencialmente do que a perder). Quem seguiu a indicação ganhou bastante dinheiro (almocei com o Kiss ontem e ele estava todo arrependido de não ter comprado). Mas não é esse o ponto aqui. Havia também uma razão lateral, e eu falei dela àquele momento. Pode parecer uma completa maluquice (talvez seja mesmo; “we are not competing, we are all crazy here”), mas uma pequena posição em moedas digitais (pasmem!) pode também ser vista como hedge/proteção. Se a gente vai para esse cenário distópico em que as FAANGs entram de cabeça nas moedas digitais, talvez seja o FIAT money clássico que entre em completo desuso. Se for o caso (não digo que será, mas é um risco, entende?), então a coisa pode virar de cabeça pra baixo e a reserva de valor passar a ser as criptos.

O bitcoin é o novo safe haven? Não sei, mas enquanto os value investors anunciam pela milionésima vez sua morte iminente, a moeda digital marca hoje quase 50 mil reais.

Se você é como eu e percebeu que não sabe absolutamente nada, diversifique, inclusive nas criptos. Como diria o value investor Warren Buffett, “a diversificação é a arma daqueles que não sabem o que estão fazendo”. Ele só esqueceu de completar: “Normalmente, as pessoas não sabem o que estão fazendo”.