Felipe Miranda: Era uma vez em… Hollywood (ou seria em Liverpool?)
“All the lonely people
Where do they all come from?”
Eleanor Rigby — The Beatles
Se você já foi ao cemitério ao lado da igreja de São Pedro em Liverpool, onde John Lennon e Paul McCartney se conheceram, deve ter visto lá a lápide de Eleanor Rigby.
Paul sempre afirma que não há nada muito misterioso sobre a música homônima, que faria referência apenas a uma personagem fictícia, uma mulher solitária do pós-guerra na Inglaterra. No máximo, a coincidência dos nomes seria alguma influência tácita não percebida e capturada pelo seu subconsciente.
Não sei a origem da coisa, mas há várias lendas no entorno da canção — entre elas, a versão de que a lápide era a maior entre todas aquelas do tal cemitério, servindo de proteção para que Paul e John pudessem dispor do uso de substâncias entorpecentes sem ser percebidos e incomodados.
Seja lá de onde veio, é minha música favorita dos Beatles. Um lamento das pessoas solitárias, em especial sobre o isolamento crescente a partir da velhice. “Morreu na igreja e foi enterrada junto com seu nome. Ninguém apareceu.” A canção — digo: o hino — ficou tão icônica que posteriormente foi esculpida uma estátua de uma senhora solitária na cidade de Liverpool, dedicada a “All the lonely people”.
O Brasil vive condições idiossincráticas muito interessantes. Estamos vindo de anos e anos de destruição de nossa economia, o que resulta em enorme capacidade ociosa, seja no mercado de trabalho, seja na indústria. Em outras palavras, há folga de oferta e costumamos gozar de relativo sucesso diante de situações como essa — o grande problema da era Dilma, por exemplo, foi justamente continuar dando estímulos de demanda numa economia a plena utilização de seus fatores de produção; o resultado foi exatamente aquele prescrito pelo livro-texto: inflação e déficit crescente em conta-corrente.
Em paralelo, enquanto o mundo sofre com investidas populistas e políticas fiscais expansionistas, o Brasil caminha na direção de reformas estruturais e liberais para equacionar a trajetória da dívida pública, anteriormente explosiva. De maneira surpreendente e curiosa, somos uma ilha de acerto da política econômica num mundo mais intervencionista e menos globalizado. Esclareço: nem acho que seja tanto por consciência profunda das vantagens da agenda liberal ou por mérito próprio. Chegamos nessa situação apenas e tão somente pela falta de alternativas. Não arrumar a casa agora nos levaria para o caminho da explosão. E, entre nossa ampla gama de defeitos, a tendência à explosão não aparenta marcar presença. Somos complacentes, macunaímicos, medíocres, do manifesto antropofágico, do banquinho, do violão, da Bossa Nova e, por favor, do Rivotril.
Para completar, vivemos uma revolução no nosso mercado de capitais, como resultado, sobretudo, de duas forças principais.
A primeira ligada ao ineditismo do patamar das taxas de juro. Vamos para uma Selic de 5 por cento — talvez menos. E lá embaixo ficaremos por bastante tempo. O produto financeiro realmente bom na história brasileira foi o CDI — como um equity guy, um sujeito apaixonado pelas ações, escutei minha vida inteira nas mesas de operações: “Nada bate o dólar, nada bate o CDI”; era especialmente irritante quando acompanhado de sotaque carioca (foi uma brincadeira; eu amo o Rio). Agora, porém, a coisa mudou. Acabou o paraíso do 1 por cento ao mês. Já era. E não volta mais. Então, todo mundo, pessoas físicas e investidores institucionais, vai precisar ir para o risco.
E então chegamos à segunda força, que é o acesso facilitado a um leque vasto de produtos financeiros. Num movimento do qual a XP é a maior protagonista, agora podemos chegar a um monte de instrumentos anteriormente inacessíveis para a maior parte das pessoas.
Ok, ótimo. Tudo isso é concreto, positivo e coloca o Brasil numa posição de destaque frente a outros países do mundo. No entanto, não conseguimos fazer muita coisa sozinhos. Não há como ser uma ilha solitária num mundo que flerta com a recessão ou tomado por uma grande aversão ao risco de emergentes e migrando em direção à segurança dos Treasuries americanos e dos bunds alemães.
Ontem, o presidente do Fed de Boston, Eric Rosengren, afirmou que não identifica necessidade de corte na taxa básica de juro norte-americana, apontando um bom momento para a economia dos EUA. O depoimento catalisou uma onda vendedora de ativos emergentes, que pagariam o pato da iminente recessão global, e uma disparada do dólar no mundo — o real é uma moeda de beta alto, muito sensível às condições sistêmicas, e os ativos brasileiros estiveram entre as piores performances globais. Ainda que as condições locais possam ser positivas, não vamos nos dar a expectativas ingênuas: sim, uma aversão ao risco global vai nos afetar fortemente, ainda que seja um movimento momentâneo, passageiro e de curto prazo.
Não à toa, o jornal Valor Econômico de hoje destaca uma saída líquida de recursos estrangeiros de 19,6 bilhões da B3 neste ano, cifra superior inclusive aos saques de igual intervalo no ano de 2008, caracterizado pela crise global.
O que fazer num cenário como esse, numa ao menos aparente dicotomia entre as forças locais e internacionais a guiar os ativos brasileiros?
Ter paciência. Eu gostaria de poder oferecer-lhe algo melhor. Mas a verdade é que não tenho. O curto prazo está especialmente desafiador. E é bom que você saiba disso. “Se as minhas respostas assustarem você, então deixe de fazer perguntas assustadoras”, alerta o personagem de Jules Winnfield em Pulp Fiction — desculpe, mas querem me convencer de que “Era uma Vez em… Hollywood” é o filme mais maduro do Tarantino; ele sequer cabe na mesma linha de “Tempo de Violência”, que, aliás, parece bem apropriado para o momento.
Não acho que seja o caso de você se desfazer de suas posições de risco. Ao final, entendo que as condições materiais do bull market estrutural prevalecerão. Primeiro pelas razões já expostas para o otimismo com os fundamentos locais. E, depois, porque não me parece ser o caso de uma recessão abrupta da economia global — ao contrário, estamos todos conversando sobre ela, de modo que podemos reagir em caráter preventivo. Ninguém escorrega numa casca de banana à sua frente, uma vez que a viu em sua frente.
Somos talebianos e achamos que os problemas mesmo derivam dos chamados cisnes negros, os eventos raros, de alto impacto e imprevisíveis a priori. Se estamos aqui debatendo os riscos de recessão global, é porque ela se mostra previsível (no sentido de que está mapeada e podemos subir as barreiras contra essa ameaça).
Ora, ora, estão todos preocupados porque os analistas apontam uma chance de cerca de 1/3 para uma recessão nos EUA em 2020. Bom, então, no meu mundo pelo menos, há uma chance de 2/3 para não haver uma recessão. E, também nesse lugar aí onde eu habito, talvez tão solitário quanto Eleanor, 2/3 ainda é o dobro de 1/3.
Para mim, o cenário mais provável é aquele mais próximo da estagnação secular. O termo foi originalmente cunhado por Alvin Hansen para descrever as baixas taxas de crescimento na década de 1930, que viriam a ser superadas apenas com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e com a geração dos baby boomers. Numa conferência em novembro de 2013 no FMI, Larry Summers resgatou a expressão para descrever a persistência sistemática de baixas taxas de crescimento, baixa inflação e baixas taxas de juro.
Resumidamente, a ideia de Summers era de que fatores estruturais da economia norte-americana e de países desenvolvidos em geral, principalmente como demografia e tecnologia (o aumento da desigualdade e o peso da regulação também costumam ser apontados), levariam a uma elevada taxa de poupança e a uma redução da demanda por investimentos, resultando numa taxa neutra de juro muito baixas, talvez inclusive em território negativo. Ou seja, para promover o equilíbrio macro, o Fed poderia ter de colocar sua taxa básica em níveis bem negativos, o que talvez seja uma impossibilidade material.
Se for esse mesmo o caso, os juros nos EUA ainda estariam muito altos e os investidores correriam em direção aos Treasuries de 10 e 30 anos, saindo da periferia e correndo para os países desenvolvidos. Somente depois de derrubar os yields desses papéis, voltaríamos a comprar ativos de risco.
Não há aqui qualquer pretensão em tradar esse movimento. O que talvez seja necessário é estender o horizonte temporal dos nossos investimentos. Tudo e só isso. Em tempos de estagnação secular, as coisas caminham mais lentamente. Não há como escapar. “We all live in a Yellow Submarine” — esse é o lado A do single de Eleanor Rigby.