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Era uma vez no oeste

23 jan 2023, 20:15 - atualizado em 23 jan 2023, 20:15

“Ia pra igreja só pra roubar o dinheiro

Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar”

(Legião Urbana)

Ele não era operador de pregão. Naquele dia porém, entre o final dos anos 80 começo dos 90 não sei precisar ao certo, foi escalado para a missão.

O Ministro acabara de sair do banco deixando a informação de que a taxa do overnight seria reduzida naquela madrugada.

Só alguém de confiança poderia ser designado a – sejamos diretos aqui – operar aquela informação privilegiada, ainda que, nem mesmo entre eles, essa fosse a expressão utilizada. Todos fingiam apenas se tratar de uma conversa informal com o admirado ministro.

Então, lá foi ele, com sua agressividade típica e a habilidade quase única de se alavancar em tão pouco tempo.

Entrou no pregão viva-voz, destilando seu francês em alto e bom som aos berros: “Compro tudo de vocês, pode fazer fila, bando de filha da puta. Tomei, tomei e tomei, cambada de vagabundo.”

Soa estranho e fora de tom. Com efeito, é estranho e fora de tom. Contudo, era meio normal àquela época – conta-se até que, ao final de cada ano, havia um sorteio de uma mulher entre os operadores.

Talvez, naquela ocasião específica, com algum exagero porque o tamanho dos lotes e a confiança demonstrada escapavam um pouco da razoabilidade. Alguns acharam, sim, aquilo descompensado, pois, claro, não sabiam da informação assimétrica.

Mas, como nos ensina Warren Buffett, tudo que você precisa para perder um milhão de dólares é ter esse um milhão de dólares e uma informação privilegiada.

Naquele dia, a taxa over foi aumentada, não reduzida. Os prejuízos do banco foram astronômicos e o mesmo operador acabou novamente escalado para voltar lá e reduzir os danos o mais rápido possível. Entrou com o rabo entre as pernas, sob os olhares e as risadas alheias pelo vexame da véspera. Saiu cabisbaixo, humilhado e maltratado. A arrogância é marcada a mercado.

Não é possível repetir a experiência, até porque o pregão viva-voz foi extinto. Percorrendo as mesas de operação, você até encontra um cliente ou trade mais verborrágico contra os brokers, mas é coisa menor. Aquele faroeste, o verdadeiro bangue-bangue acabou.

Bom, ao menos deveria ter acabado.

Depois de um longo silêncio sepulcral, o 3G resolveu falar sobre Americanas. Escreveu um comunicado protocolar. Disse que não sabia de nada, prometeu empenho para recuperar a empresa, lamentou as perdas sofridas pelos investidores e credores.

Lembrou também que foi alcançado pelos prejuízos – ao ler, tive a sensação de que, se deixassem mais algumas linhas para a turma escrever acabariam pedindo ressarcimento pelo rombo, vítimas de um grande escândalo que não lhes pertence.

Talvez os dois leitores mais críticos pudessem apontar que não havia muito espaço para um caminho diferente. Protocolos existem para serem seguidos.

Qualquer coisa distinta poderia comprometê-los, seria uma espécie de tiro no próprio pé. É difícil discordar. Contudo, como escreve Shakespeare, palavras não pagam dívidas. Há oito pontos na carta, nenhum compromisso com injeção de dinheiro.

Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira não são apenas acionistas de referência da companhia.

Foram por décadas controladores da empresa, incluindo aí o período do escândalo. Mas também não são só isso.

Eles se transformaram num símbolo da companhia, uma metonímia da eficiência operacional e financeira.

Está tudo lá no livro Sonho Grande, o conhecimento autodidata e intuitivo e também as lições aprendidas com Sam Walton, Jim Collins e companhia.

Do aproveitamento inédito dos espaços aéreos entre gôndolas para a exposição dos ovos de Páscoa (meu Deus, até eles viraram polêmica agora!) à gestão financeira moderna – talvez moderna até demais, com certa elasticidade ética e contábil.

Garantia, ALL, Kraft Heinz, Americanas. Tem mais de um exemplo para cada um dos Gs.

Talvez também pudessem apelar à velha máxima de que não se joga dinheiro bom atrás de dinheiro ruim.

Mas não é apenas disso que se trata. Estamos falando de possivelmente as maiores referências do capitalismo moderno brasileiro. Se o Barão de Mauá seria, sei lá, uma espécie de Howard Hughes, os 3G poderiam duelar imageticamente com Sam Walton, Jack Welch e companhia.

Seria dinheiro bom atrás de legado bom, se isso lhes importar em algo. E deveria importar.

No meu entendimento particular, ainda que cada uma das palavras do comunicado seja verdadeira, o problema que agora vem à superfície com Americanas deriva, talvez entre outras coisas (reconheça), sim, de uma cultura corporativa desatualizada, que fazia sentido para os anos 80, na época do faroeste e do bangue-bangue, mas que não se alinha ao capitalismo de stakeholder e à imposta total transparência dos negócios num mundo de enorme escrutínio sobre tudo que fazemos.

O Garantia era conhecido pela sua sagacidade, mas também por sua truculência, cowboys de mercado.

Na economia real, colocamos água na cerveja, depois milho pra piorá-la um pouco mais. Também vamos com mais água no catchup.

Vestimos corte de produto com a retórica de corte de custo. São coisas bem diferentes. O primeiro piora seu material e afasta clientes no longo prazo, nada tem a ver com produzir a mesma coisa com mais eficiência.

Enquanto isso, esmagamos fornecedores com prazos, aliciamentos e ameaças, ao mesmo tempo em que os colaboradores internos convivem com o risco tácito e, se precisar, explícito de demissão em caso de não se cumprirem as metas. Ou você cumpre a meta ou…

Se a sobrevivência está em jogo, só há uma coisa a se fazer: cumprir a meta, ainda que ela não tenha sido, de fato, cumprida. Abusamos da elasticidade contábil e ética, porque todos têm bocas a alimentar e boletos para pagar.

O trio símbolo do capitalismo brasileiro precisa agora se lembrar do que é a essência do capitalismo, que passa por respeito aos contratos, direitos de propriedade e obediência à sinalização do sistema de preços.

Não há como atacar essas bases e se manter como grande empreendedor. A própria origem do Parlamento inglês remete à necessidade de a burguesia proteger seus direitos econômicos (contratos e direitos de propriedade) dos direitos políticos quase ilimitados da nobreza decadente economicamente – sem isso, toda a organização moderna está em risco.

Empresas, no final do dia, são pessoas e suas culturas delas derivam. Ao escolher companhias para investir ou até mesmo trabalhar, precisamos observar se os controladores e os administradores são capazes de ler o zeitgeist atual e colocar suas empresas na direção da transformação ao futuro, uma rara união entre conservar o que funciona e se adaptar aos novos ventos.

Às lideranças, não cabe mais esmagar todo mundo em prol de um ponto a mais de margem. Ao mesmo tempo, também não há espaço para se perder em discussões sobre o gênero e o nome do terceiro banheiro.

Pra mim, moderno mesmo é o velho Jorge Ben: se malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem.