Empresas de saneamento debatem marco regulatório do setor no Fórum da Água
Presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), o pernambucano Roberto Cavaltanti Tavares conta que a entidade vai levar ao 8º Fórum Mundial da Água, que começa amanhã (18) em Brasília, a necessidade de debater a Medida Provisória que tem por objetivo revisar o marco regulatório do setor. Segundo Tavares, durante tramitação no Congresso Nacional, parlamentares incluiram mudanças que vão impactar de forma negativa esse segmento.
Administrador de empresas e atual presidente da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa), Tavares concedeu entrevista exclusiva à Agência Brasil onde tocou também num outro tema: a privatização das empresas de saneamento. Confira a íntegra da entrevista.
Agência Brasil – O Brasil sediará o 8º Fórum Mundial da Água, que começa amanhã. Será um momento importante para o debate sobre o tema. Quais propostas a entidade levará para esse fórum?
Roberto Tavares – Desde 2015, a Aesbe tem trabalhado uma agenda propositiva focada em questões institucionais e financeiras que visam a melhoria da prestação dos serviços de abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgotos. A agenda da Aesbe foi defendida em vários fóruns, logrando até mesmo a inclusão de parte de seu pleito nas proposições da Subcomissão denominada Subágua, da Câmara dos Deputados.
Essa mesma agenda também será levada ao 8º Fórum Mundial da Água, mas como prioridade, a Aesbe defenderá mudanças na minuta de proposta de Medida Provisória que objetiva revisar o marco regulatório do setor. Ainda em 2016, o governo federal iniciou a revisão do arcabouço legal do saneamento. Mas, somente ao final do ano passado, apresentou aos representantes do setor a minuta da proposição elaborada.
Para nossa surpresa, após análise do texto entregue, observamos que a revisão, tal como proposta, ataca o mecanismo do subsídio cruzado e prejudica a economia de escala e a prestação regionalizada dos serviços, modelo adotado pelas empresas estaduais de saneamento, que representa dois terços da prestação dos serviços de saneamento no país.
Cabe ressaltar que a Aesbe defende a revisão do marco regulatório do saneamento, bem como o aumento da participação privada no setor, desde que essas ações levem em consideração a prestação regionalizada, o subsídio cruzado e crie as condições para a universalização dos serviços. Por essa razão defendemos uma agenda propositiva que visa tornar o ambiente institucional propício ao setor. Mas, a proposta do governo, em nossa opinião, irá desestruturar o setor de saneamento se mantido alguns dispositivos constantes do texto original da minuta.
Refiro-me ao Artigo 10-A da minuta da Medida Provisória, que pretende obrigar os municípios a perguntarem previamente à iniciativa privada se eles têm interesse na concessão dos serviços de saneamento, antes de renovar um contrato de concessão atualmente válido, independente de a prestação ter sido bem sucedida ou até mesmo ter atingido a universalização. Cabe ressaltar que essa possibilidade já existe atualmente, mas torná-la obrigatória levará a um ambiente de insegurança jurídica maior, prejudicando os investimentos. Pensar município a município e oferecer a possibilidade do setor privado escolher apenas os municípios rentáveis irá reforçar uma ação que trivialmente chamamos “separar o filé do osso”.
Isso porque, caso a iniciativa privada tenha interesse em um determinado município, este fica proibido de contratar a Empresa Estadual, pois é obrigado a licitar. Por outro lado, caso o setor privado não tenha interesse no município, obviamente por ser deficitário, terá que ser assumido pela Empresa Estadual ou ficará à mercê do próprio município. Ou seja, aumentará ainda mais o fosso do saneamento entre ricos e pobres. Sendo assim, a Aesbe está recomendando ao governo federal a exclusão sumária do artigo 10-A.
Outra controvérsia observada pela Aesbe no texto da proposta de minuta, diz respeito à titularidade dos serviços de saneamento. Esse tema é tratado nos Artigos 8-A e 8-B. A forma como a titularidade é versada nesses dispositivos pode gerar um enorme risco de judicialização. Os artigos vão de encontro à interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) que decidiu, em 6 de março de 2013, que em regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas a titularidade dos serviços de saneamento básico caberá à entidade formada pelo estado e pelos municípios que as componham.
A Aesbe também tem solicitado ao governo federal alterações nesses dispositivos, entre outras questões. Dada a importância desse tema ao setor priorizaremos essa pauta nos debates do evento.
Agência Brasil – Somos uma das maiores reservas de água doce do planeta. Mesmo assim, muitas cidades têm passado ou passaram pelo racionamento. Na opinião do senhor falta planejamento com relação ao uso da água? E os investimentos?
Roberto Tavares – Sim. O Brasil possui 12% da disponibilidade de água doce superficial do mundo, segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA). Por gozarmos de tamanha abundância e atendermos às diretrizes da Organização das Nações Unidas (ONU), que primam pela dessedentação humana [uso da água para atender e saciar o homem], focamos nossa gestão em ampliar a oferta de água à população brasileira.
Fomos exitosos nessa questão. Atualmente atendemos mais de 74,2% da população urbana do país espalhada por mais de 4.030 municípios. Mas, por trás dessa abundância temos um fator muito negativo ao abastecimento no Brasil: a distribuição desigual do quantitativo de água entre as regiões. Isto é, temos muita água concentrada na bacia Amazônica (80% da disponibilidade hídrica do país), onde se encontra o menor contingente populacional e demanda reduzida. Enquanto a bacia da Região Semiárida encontra-se em estresse hídrico (0,1% da disponibilidade hídrica do país) e onde se encontra a segunda maior densidade populacional entre as 12 Regiões Hidrográficas do país. São dados muito discrepantes.
Com as mudanças climáticas, essa distribuição desigual do quantitativo de água foi evidenciada, pois com o acirramento das estiagens e redução do volume de chuvas em algumas regiões, o racionamento tornou-se necessário. Exemplos clássicos dessa situação são o estado de São Paulo e o Distrito Federal.
De fato, temos que desenvolver mais planos emergenciais e melhorarmos a gestão do abastecimento. Mas esse trabalho não depende apenas dos operadores de saneamento e dos governos, mas também da conscientização da população no consumo racional da água.
Agência Brasil – A entidade tem entre seus associados empresas estatais e privadas que abastecem boa parte da população. O senhor acha que as companhias privadas são melhores geridas (administradas)? O setor deveria ser totalmente privado?
Roberto Tavares – Não. Como sempre digo há espaço para todos. Temos exemplos positivos e negativos em ambos os lados. O setor perdeu muito tempo com essa discussão “público versusprivado”. Temos questões mais urgentes a serem equacionadas como, por exemplo, a reestruturação responsável do setor de saneamento. Precisamos de mais segurança jurídica aos operadores, sejam eles públicos ou privados atuando com contratos claros e de longo prazo.
A Aesbe tem alertado sobre essa questão da necessidade de um novo arranjo institucional que comporte e harmonize esses modelos de gestão e não coloquem uns em detrimento de outros. Precisamos preparar o ambiente do setor de modo a promover a justa concorrência entre os segmentos.
As maiores PPP’s [parcerias público-privadas] do Setor de Saneamento tem sido promovidas pelas empresas estaduais. O setor privado é imprescindível para sairmos dessa situação desfavorável no Saneamento, mas a sua expansão deve ser com economia de escala, pegando municípios rentáveis e deficitários, de forma a não excluir e diferenciar pobres e ricos. O subsídio cruzado praticado pelas empresas estaduais permitirá isso.
Agência Brasil – Ao mesmo tempo que se pede à população para economizar água, em diversas cidades percebemos que as redes das companhias estão deterioradas ou danificadas. Os vazamentos nessas redes também ocorrem com frequência. Isso é falta de investimento ou descaso dos gestores?
Roberto Tavares – Falta de investimentos para a finalidade manutenção/melhorias. Como temos por diretriz a dessedentação humana, priorizamos a ampliação da oferta. Mas, de fato, não podemos só ampliar o abastecimento, pois isso não é sustentável ambientalmente e nem economicamente. Temos sistemas de água com mais de 50 anos.
Por essa razão, desde a década de 90, as empresas estaduais de saneamento têm investido e priorizado a gestão de perdas de água, que contempla desde as perdas físicas (vazamentos, entre outros) até a perda no faturamento (inadimplência). Como disse anteriormente, precisamos de segurança jurídica para fazer mais investimentos de forma perene.
Agência Brasil – Qual o percentual de população atendida por essas empresas? Há algum plano de inverter esse cenário?
Roberto Tavares – Atendemos mais de 125 milhões de habitantes em mais de 4.030 municípios brasileiros. Isto é, mais de 74,2% da população urbana do país. Queremos ampliar essa participação com o aumento de parcerias em larga escala com o setor privado.
Agência Brasil – Como conscientizar o cidadão a participar dessa da campanha pelo uso racional da água? O senhor vê algum avanço nas últimas décadas?
Roberto Tavares – Isso é algo complexo, pois essa mudança comportamental deve ser trabalhada por gerações. Por isso, nossa maior esperança e esforços estão na educação ambiental, realizada por meio de atividades em escolas, centros comunitários e universidades.
As unidades socioambientais das empresas estaduais de saneamento promovem visitas do público às instalações de estações de tratamento de água ou de esgotos, palestras e todo tipo de ações que envolvam a sensibilização das pessoas para essa necessidade.
Quando o aprendizado não acontece pela educação, ele vem pela imposição de restrições e penalidades. Os resultados desses refreamentos são, na maioria das vezes, temporários e pouco efetivo.
Mas, desde que a pauta ambiental foi abraçada pela área educacional, já observamos a formação de gerações mais conscientes. São crianças e jovens que levam para casa o aprendizado e forçam seus familiares a adotarem hábitos mais sustentáveis. São os chamados replicadores, que influenciam a mudança de comportamento no núcleo mais próximo ao indivíduo.
Agência Brasil – Qual é o vilão desse setor? Quem consome com mais intensidade? Quais as causas? Quais as consequências?
Roberto Tavares – Eu não diria “vilão”, mas sim grandes consumidores. O setor agrícola e o industrial, respectivamente. Todo processo produtivo envolve o consumo de água. Não é à toa que inventaram a pegada hídrica, processo pelo qual é medido o volume de água na produção de bens e de serviços consumido por indivíduo, empresas, comunidades, entre outros.
Por isso, nesses segmentos a racionalização e, principalmente, o reuso são fundamentais pois interferem diretamente na economia e na sustentabilidade dos negócios.
Cabe ressaltar que, na necessidade de se decidir sobre quem atender em primeiro lugar, a dessedentação humana sempre será priorizada.
Agência Brasil – O setor agrícola chegou a ser apontado pelo uso excessivo da água. Sabemos que os grandes produtores utilizam técnicas de menor emprego da água na lavoura. Onde está o problema?
Roberto Tavares – Como dito anteriormente, o problema está na distribuição hídrica tão irregular em nosso país. Não é apenas o consumo que pesa nessa questão, mas a capacidade de acesso e de distribuição corroboram para a escassez da oferta.
Agência Brasil – Outro problema que tem gerado muita reclamação são as ligações clandestinas de água. Cidadãos ou empresas entram nas redes externas e fazem o famoso “gato”. O senhor tem como avaliar os prejuízos causados por essa sangria?
Roberto Tavares – Os prejuízos são grandes. Não só em termos quantitativos, mas também qualitativos. Ao realizarem essas ligações clandestinas, as redes públicas de abastecimento ficam expostas a contaminações externas e a redução de pressão, prejudicando a chegada de água às residências e demais estabelecimentos.
Agência Brasil – Quais outros considerações o senhor gostaria de fazer sobre o tema?
Roberto Tavares – Nosso país precisa de estadistas. Quem estiver à frente dos governos, seja federal, estadual ou municipal, no Executivo ou Legislativo, precisa entender que os tempos mudaram. Precisamos pensar o país. Não se pode querer mudar um marco regulatório para atender pedidos de entidades que não tem compromisso com o país e apenas olham seus interesses imediatos. A Aesbe estará firme e forte na defesa do saneamento inclusivo e eficiente em todo o país.