Opinião

Dominância fiscal e o debate entre economistas brasileiros

16 fev 2017, 14:10 - atualizado em 05 nov 2017, 14:07

Lucas Favaro é colaborador do Terraço Econômico

Faz muito tempo que os Bancos Centrais pelo mundo buscam controlar a inflação via política monetária, por meio do mecanismo de ajuste da taxa básica de juros da economia (no caso do Brasil, essa taxa é a SELIC). A ideia é que ao se aumentar os juros, a atividade econômica será menor e, portanto, a inflação também será menor, e vice-versa. Assim, busca-se adequar a taxa de juros à taxa neutra de juros – a taxa em que os juros não exercem pressões inflacionárias nem deflacionárias.

Esse modelo de política monetária é recorrentemente questionado no Brasil, sobretudo por economistas considerados mais heterodoxos. Entretanto, recentemente foi questionado por um nome de peso da economia ortodoxa brasileira: André Lara Rezende (ALR), um dos criadores do Plano Real e um dos economistas mais respeitados do Brasil.

Seu texto para o jornal Valor Econômico em que ele questiona tal modelo gerou a uma explosão de debates entre os economistas brasileiros, alguns concordando com ele e outros discordando. Muitos textos foram publicados, e para não perder o fio da meada, resolvi elencar em ordem cronológica o curso do debate, com objetivo meramente informativo ao leitor. Evito tomar qualquer tipo de posicionamento de um dos lados – até porque estou longe de ter a menor competência técnica para isso.

Já aviso de antemão ao leitor que é possível que eu tenha deixado escapar alguma resposta de algum economista relevante, mesmo com todo o zelo para que isso não ocorresse.

Essa tentativa de organizar o debate de forma ordenada se justifica pela importância que ele vem tendo, com muitos economistas importantes participando e dando suas opiniões. Espero que o leitor aproveite.

Pois bem, vamos ao debate.

1º – “Juros e conservadorismo intelectual” – André Lara Rezende, Valor, 13/01.

No texto que deu origem a tudo, ALR se baseou em um artigo científico recente do economista John Cochrane, da Universidade de Stanford, em que alega existir uma relação causal de proporção direta entre juro nominal e inflação no longo prazo. ALR diz que a experiência do quantitative easing nos países desenvolvidos após a crise de 2008 não gerou os efeitos esperados pela teoria macroeconômica convencional (neokeynesiana), e que a hipótese neofisheriana explica os efeitos subsequentes à crise de uma forma mais satisfatória. Tal hipótese está assentada sobre a equação de Fisher, que diz que juro nominal é igual a juro real mais expectativa de inflação. Essa equação é amplamente aceita pelo mainstream economics, mas é aceita tão-somente como uma equação de identidade, isto é, não há influência no longo prazo do juro nominal sobre o juro real e muito menos sobre a expectativa de inflação. O que os neofisherianos fazem é inverter essa lógica e dizer que ela não esboça apenas uma identidade, mas uma relação causal em que o juro nominal no longo prazo influencia a expectativa de inflação e, portanto, a inflação.

Em suma, a conclusão do trabalho sugere o exato oposto da política monetária tradicional: para se combater a inflação no longo prazo, deve-se diminuir a taxa de juros, e não aumentá-la, como se faz hoje no mundo todo. “A condução da política monetária estaria assim, há décadas, seriamente equivocada”, afirma ALR.

ALR concorda que a taxa de juros maior conduz a uma inflação menor no curto prazo. Então como esse fato poderia ser compatibilizado com a teoria neofisheriana? Com a Teoria Fiscal do Nível de Preços. A inflação seria, segundo tal teoria, indeterminada: ela varia ao sabor das expectativas, e as expectativas variam conforme a política fiscal. “É, portanto, a política fiscal, o equilíbrio sustentável de longo prazo da dívida pública, que em última instância determina a taxa de inflação”.

A tese de que a política fiscal, e não a monetária, é quem determina a inflação é chamada de tese da dominância fiscal. Em 2004, o ex-economista-chefe do FMI Olivier Blanchard sugeriu que o fenômeno da dominância fiscal existiria no Brasil naquela época. Nos idos de 2015, quando a crise econômica brasileira estava se mostrando muito mais grave do que se imaginava, a eminente economista Monica de Bolle retomou essa tese. Essa tese foi, na época, bastante debatida; mas foi sendo aos poucos descartada, principalmente após a queda na inflação e a perspectiva de melhora do quadro fiscal no ano de 2016. Mas agora ela renasceu com tudo com o artigo do ALR.

“O custo do conservadorismo intelectual nas questões monetárias, durante as quatro décadas de inflação crônica do século passado, já foi alto demais”, finalizou ALR.

2º – Postagens de Carlos Eduardo Gonçalves no seu perfil do Facebook.

Carlos Eduardo Gonçalves (Dudu), do site Por quê?, fez algumas críticas ácidas ao texto do ALR. Disse que “apostaria dinheiro que o ALR não entendeu o que copiou” e que “baixa qualidade técnica disfarçada por elegante redação e referência relevantes marcam o último artigo de ALR para o Valor”. Seus textos não ficaram restritos a esses ataques, pelo contrário, foram embasados com argumentos. Ele fez uma série de quatro textos, dos dias 15 ao 18, um em cada dia. O primeiro pode ser visto aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui e o quarto aqui.

3º – “Economismo” – Monica de Bolle, Estadão, 15/01.

De Bolle concordou com ALR e foi extremamente crítica aos economistas coniventes com os supostos erros cometidos pela equipe econômica do presidente Temer e aos economistas que resistem em mudar suas crenças para levar em conta os novos fatos que comprometem tais crenças.

“No mínimo, isso deveria levar a uma reflexão sobre os fundamentos da teoria econômica tradicional, ensinada nos cursos básicos das universidades”, disse ela a respeito dos efeitos inesperados do QE.

“Dogmas foram substituídos por outros dogmas. Credita-se ao governo Temer a queda da inflação, ignorando-se a inusitada contração de mais de 10% da renda por indivíduo – o PIB per capita – no biênio 2015-2016”, criticou Monica.

4º “Nihil novi sub sole: uma réplica a Lara Resende” – José Luís Oreiro para seu blog, 15/01.

“Lemos no Livro do Eclesiastes 1:9 que “Não há nada de novo debaixo do Sol”. Esta é a impressão que tive ao ler o artigo de André Lara Resende”. É assim que Oreiro inicia seu texto, dizendo que o argumento apresentado por ALR já fora antes apresentado por Thomas Sargent e Neil Wallace, em um artigo de 1981. Também diz que nesse modelo a moeda é hiper-neutra, e que por isso não consegue entender o entusiasmo com que muitos heterodoxos receberam o texto do ALR (um dos postulados básicos de muitas escolas heterodoxas é que a moeda não é neutra nem no longo prazo). Também diz que não acredita que o Brasil sofra de dominância fiscal, por motivos elencados no texto.

5º – “Nada de novo no debate monetário no Brasil” – Marcos Lisboa e Samuel Pessoa, Valor Econômico, 20/01.

Lisboa e Pessoa também se mostraram céticos à tese de Cochrane, afirmando que “seria desejável uma robusta evidência empírica para extrair dessa possibilidade [a tese de Cochrane] uma proposta de condução alternativa de política monetária no Brasil” e que “os testes empíricos disponíveis indicam que o modelo padrão funciona por aqui: aumento da taxa real de juros reduz a demanda, como ilustra a atual queda da inflação em contraposição ao afrouxamento da política monetária a partir de agosto de 2011”.

6º – “Os juros não funcionam mais contra a inflação?” – Vídeo do Dudu no canal Por quê? Economês em bom português, 23/01.

No vídeo, Dudu esclarece de forma básica como funciona a política monetária no Brasil, explica o conceito de dominância fiscal e diz que os dados disponíveis não corroboram a tese de que o país sofre desse fenômeno.

7º – “BC recuperou capacidade de ancorar as expectativas de inflação” – Alexandre Schwartsman para a Folha, 25/01.

Em um pequeno artigo em sua coluna semanal na Folha, Alexandre Schwartsman contribuiu com os seus dois centavos. Afirmou que há cerca de um ano as expectativas de inflação para 2017 eram maiores do que as de hoje. Naquela época, estavam em cerca de 6%, e hoje está na casa dos 4,7%. Da mesma forma, as expectativas para as taxas de inflação para os anos de 2018 e 2019 eram muito maiores do que agora. “Isso sugere que o BC recuperou a capacidade de ancorar as expectativas, que havia sido perdida – depois de duramente conquistada – pela gestão anterior“.

“Resta hoje pouca dúvida de que a tese [de dominância fiscal] se mostrou equivocada. Melhor sorte na próxima vez”, finalizou Schwartsman, com sua irreverência característica.

8º – “Tá tudo dominado?” – Texto do Dudu em sua página do Facebook, 25/01.

No texto, Dudu explica a origem da tese de dominância fiscal – o artigo do Thomas Sargent já citado pelo Oreiro – e os mecanismos pelos quais ela ocorre. Em seguida, mostra que há no Brasil uma clara influência da taxa SELIC sobre a inflação dos preços livres. Isso corrobora ainda mais a tese de que o país não passa por dominância fiscal.

9º – “Teoria, prática e bom senso” – Segundo texto do ALR para o Valor Econômico, 27/01.

Nesse outro texto do ALR para o Valor, ele basicamente faz um apanhando histórico das teorias monetárias ao longo dos séculos, explica os motivos pelos quais escreveu seu primeiro texto, responde algumas críticas que o texto sofreu e reafirma as teses do mesmo, esclarecendo alguns pontos e adicionando outros.

10º – “Neofisherianismo: vai entender” – Eduardo Loyo para o Valor, 03/02.

Na minha opinião esse é o artigo mais complexo e mais brilhante do debate (pelo menos até agora). Loyo começa apontando o que há de crença comum entre o neofisherianismo e a ortodoxia, para em seguida mostrar em que ponto exatamente os dois diferem. Ambos aceitam a equação de Fisher, mas a ortodoxia a aceita juntamente com o princípio de Taylor, e é daí que eles chegam a conclusões opostas a respeito do comportamento da inflação: enquanto o neofisherianismo diz que juro nominal mais alto gera inflação mais alta, a ortodoxia diz o oposto, isto é, que juro nominal mais alto gera inflação mais baixa. Também explica como funciona o mecanismo de combate à inflação feito pelos bancos centrais e como tal mecanismo se compatibiliza com a teoria ortodoxa. Em seguida, escreve sobre a explicação alternativa neofisheriana.

O parágrafo final do seu texto é uma exortação: “Por mais engenhoso e intelectualmente estimulante que possa ser enquanto linha de pesquisa acadêmica, por mais precoce que seja sua popularidade em certas regiões da blogosfera, e por mais tentadora que soe, no Brasil de hoje, sua promessa de obter da redução rápida dos juros impulso de curto prazo à atividade econômica e ajuda na convergência da inflação, o neofisherianismo ainda é exploratório e marginal demais no corpo da ciência econômica para avalizar o mergulho numa política monetária experimental, norteada pela total contraversão do senso comum”.

11º – Entrevista de Armínio Fraga para a Folha, 05/02.

Um debate público de macroeconomia no Brasil não poderia estar completo sem o pai do tripé macroeconômico dar as caras. Nessa entrevista, Armínio diz que “o Brasil tem inúmeros exemplos de que a política monetária funciona” e que “o problema é que essa sugestão [de abaixar a taxa de juros para reduzir inflação] encontrou terreno fértil no Brasil, que adora um atalho, e parece não ter aprendido com as lições do passado”.

12º – “Taxa de juros no Brasil tem de ser debatida” – Laura Carvalho, Folha de São Paulo, 09/02.

Laura contribui ao debate concordando com ALR em alguns pontos mas discordando em outros. Diz concordar que o crescimento de estoque de moeda na economia não é determinante fundamental da inflação e que a elevada taxa de juros importa pelo Banco Central contribui para elevar a dívida pública. Por outro lado, diz discordar que a inflação em 2015 tenha sido mais alta em razão dos juros altos, “mas tampouco exigia juros tão altos para ser controlada, como vociferam seus opositores”.

13º – “O debate sobre os juros no Brasil” – Armínio Fraga para O Globo, 10/02.

Aqui Armínio elabora melhor suas ideias contidas na sua entrevista concedida. Se referindo à PEC do teto dos gastos, afirma não crer que “o ajuste a longo prazo seja o suficiente para que se possa abandonar um certo conservadorismo na prática da política monetária. E mais, a sinalização de que poderia haver um caminho mais fácil na área monetária reduziria o ímpeto para o ajuste fiscal necessário”.

14º – “Taxa de juros e inflação” – José Júlio Senna para o Valor, dia 10/02.

Outro texto brilhante da série. Nele, Senna rebate algumas ideias expostas nos textos do ALR. Diz ele que “essa linha de argumentação [a de ALR] não nos parece aceitável. Primeiro, porque não apenas as abordagens teóricas criticadas há décadas funcionam bem para explicar fenômenos monetários, como também é possível reconciliá-las com os resultados observados após a crise financeira”.

Senna dá uma explicação para o fato do quantitative easing não ter sido seguido por uma explosão inflacionária: “Se empresas contraem investimentos, famílias reduzem o consumo, e novos empréstimos são rejeitados mesmo a juros baixíssimos, não há como os meios de pagamento crescerem na mesma proporção da base. E, sendo assim, também não há como a inflação “explodir” em consequência de QE”.

“Dependendo de como se apresente a discussão no Brasil, transmite-se a ideia de que é possível resolver, sem custos, tanto o problema da inflação quanto parte de nossos problemas fiscais, bastando para isso derrubar a Selic. É inadequado levar o público e o meio político a acreditarem nessa possibilidade, em particular quando a sociedade tem de enfrentar pesada carga de indispensáveis ajustes macroeconômicos”, alerta Senna.

15º – Entrevista concedida pelo Lara Resende à Época, 11/02.

Nessa entrevista extremamente lúcida, ALR comenta um pouco sobre a repercussão do seu texto. Diz que não sentiu-se mal compreendido entre os colegas e que entende o papel de um conservadorismo político e social, mas que o conservadorismo intelectual o espanta, pois parece a ele uma contradição. Fala também um pouco sobre sua trajetória que o levou a formular o Plano Real e sobre a atuação do Banco Central.

O debate ainda está ocorrendo, e é bem provável que novas respostas sejam dadas depois que esse texto for publicado.

A questão mais interessante que se coloca é: será que a ciência econômica está passando por uma mudança de paradigma em sua parte monetária ou será que a tese do Cochrane e dos neofisherianos está só passando por uma fama passageira? Apenas o tempo dirá, mediante novos estudos e debates abertos, críticos e honestos.

Tenho consciência de que o debate de verdade ocorre nos artigos especializados, restritos a um punhado de especialistas confinados em suas “torres de marfim”. Mas às vezes o debate toma grandes proporções e transborda o ambiente acadêmico especializado, chegando a manifestações públicas dos economistas nas colunas de grandes jornais e até mesmo em seus perfis no Facebook. Quando isso ocorre, os entusiastas não especializados têm a oportunidade de acompanhar o debate, ainda que por cima.

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