Denúncia de homicídios no caso Brumadinho pode criar impasse entre investigações estadual e federal
As acusações de homicídios dolosos duplamente qualificados apresentadas contra o ex-CEO da mineradora Vale (VALE3) Fabio Schvartsman e outras 15 pessoas foram vistas pelos afetados com o rompimento mortal de barragem da companhia em Brumadinho (MG) como um grande passo na busca por responsáveis pelo desastre.
Mas a denúncia do Ministério Público de Minas Gerais, encaminhada na semana passada, corre o risco de gerar uma divisão entre a investigação estadual e a conduzida por autoridades federais, complicando o processo judicial, com potencial de arrastar seu andamento e tornar condenações menos prováveis, de acordo com especialistas em direito, incluindo uma pessoa com conhecimento do caso.
Investigadores federais ainda não identificaram a causa do colapso da barragem em Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019 –que deixou 259 mortos e 11 desaparecidos até o momento.
A Polícia Federal e o Ministério Público Federal afirmaram neste mês que uma complexa perícia sobre as causas do incidente deve ser concluída até junho e os resultados desse trabalho serão importantes para determinar eventuais culpados pela tragédia.
Isso significa que as duas investigações sobre uma das piores tragédias de mineração do mundo estão fora de sintonia, o que gera dúvidas sobre seus desdobramentos.
“A denúncia surpreendeu um pouco porque havia um laudo técnico esperado”, disse o advogado e professor de direito criminal na FGV-SP Davi Tangerino.
“Eu acho que efetivamente não há elementos seguros para a acusação de homicídio, porque justamente falta esse elemento técnico”, acrescentou Tangerino, em referência à perícia citada pelas autoridades federais.
Uma fonte com conhecimento das investigações, falando sob condição de anonimato, disse que a divergência entre processos estaduais e federais provavelmente seria usada pelas defesas.
“Deram muita munição para as defesas”, disse a fonte, acrescentando que a Vale procuraria retratar a falta de um estudo técnico sobre o desastre como uma falha na denúncia.
No dia em que as acusações foram anunciadas, a Vale e os advogados do ex-CEO Fabio Schvartsman enfatizaram que o laudo técnico sobre as causas ainda não estava completo.
Os advogados de Schvartsman disseram, na ocasião, que “denunciar Fabio por homicídio doloso é açodado e injusto” sem as conclusões da investigação.
Em um comunicado à Reuters nesta segunda-feira disseram: “Fábio sempre contribuiu com as investigações… na esperança que qualquer decisão sobre a responsabilidade penal fosse feita com critérios técnicos. Lamentavelmente, não foi o que ocorreu.”
A Vale disse que é “fundamental que haja uma conclusão pericial, técnica e científica sobre as causas do rompimento da barragem B1 antes que sejam apontadas responsabilidades”. Afirmou também que está cooperando com as autoridades e ajudando as pessoas afetadas pelo desastre.
A alemã TÜV SÜD, responsável pelo laudo de estabilidade da barragem, ressaltou que “um ano após o rompimento, suas causas ainda não foram esclarecidas de forma conclusiva” e também afirmou estar contribuindo com as investigações. A companhia foi denunciada ao lado da Vale por crimes ambientais.
O MPF disse que, desde o início das investigações, tem mantido interlocução com o MPMG e as autoridades policiais com o objetivo de reunir o máximo de evidências sobre o caso e assegurar uma persecução penal justa, completa e eficiente.
O MPMG não respondeu aos pedidos de comentários.
Ao oferecer a denúncia, na semana passada, o MPMG afirmou, referindo-se à mineradora e a TÜV SÜD, que “ficou demonstrada a existência de uma promíscua relação entre as duas corporações denunciadas no sentido de esconder do poder público, sociedade, acionistas e investidores a inaceitável situação de segurança de várias das barragens de mineração mantidas pela Vale”.
Competência
Para o advogado e professor de processo penal Alberto Zacharias Toron, ainda não ficou claro se a competência será da Justiça federal ou estadual. Para ele, uma eventual disputa poderá atrasar o julgamento e facilitar o caso para a defesa.
“De repente, (em um cenário de disputa de competência), o STJ (Superior Tribunal de Justiça) diz que a competência é federal e todo esse trabalho vai ser anulado, inclusive a denúncia”, disse ele.
Decidir a competência de um caso pode ser complicado, especialmente quando envolve várias pessoas, áreas e crimes. Certas terras, como reservas, são federais, por exemplo, enquanto o assassinato é frequentemente considerado como uma competência do Estado.
A investigação criminal sobre o rompimento anterior de barragem em Mariana (MG), que ocorreu em uma mina da Samarco –joint venture da Vale com a BHP— pouco mais de três anos antes de Brumadinho, sofreu atrasos devido a discussões sobre a competência.
O caso acabou por ser julgado em tribunais federais, em parte porque a escala do desastre significava que ele poluía um rio federal e impactava mais de um Estado e o litoral.
Toron, que trabalhou na equipe de defesa no caso do desastre da Samarco, ressaltou que na ocasião pessoas foram acusadas de homicídio, mas a defesa conseguiu posteriormente desclassificar a imputação original e transformá-la em “inundação qualificada pelo resultado morte”.
Essa mudança no processo demandou sete meses, segundo disse o MPF, em um comunicado à imprensa.
E mesmo essas acusações menores foram posteriormente rejeitadas por um juiz federal, em setembro passado, sob alegação de que os réus ligados à governança da Samarco não “exerciam funções de gerência”. O MPF recorreu da decisão.
No caso de Brumadinho, o MPMG concentrou as denúncias em executivos e funcionários da Vale e da TÜV SÜD, e não sobre os membros da área de governança, mas resta saber se isso ajudará a garantir eventuais condenações.