Crises fiscais causam revoluções sociais
Em conversa com o Nobel Thomas Sargent, o também Nobel, Milton Friedman revela: “crises fiscais causam revoluções sociais”. Difícil argumentar que as “jornadas de junho” em 2013 ocorreriam em um cenário de gastos eficientes, inflação controlada, tributação progressiva e crescimento sustentado.
Os pesquisadores Reinhart e Rogoff, em um exercício faraônico de coleta de dados no livro “This time is different, Eight Centuries of Financial Folly”, nos disponibilizam os dados para mostrar que a dívida pública importa, e muito, em termos sociais e políticos.
A elaboração da figura foi realizada pelo Prof. Roberto Ellery. A dívida pública próxima ao nível de 90% do PIB, está associada com mudanças políticas importantes no Brasil. Sendo a última delas, a passagem da ditadura militar, o período que desemboca na década perdida e nos problemas hiperinflacionários que marcam a história do país.
Apesar de muitos, como a ex-presidente Dilma Rousseff, sustentarem que “gasto é vida”[1], a dívida pública sustentável e o orçamento equilibrado permitem a continuidade de políticas públicas. Quando os economistas alertam para as consequências da irresponsabilidade fiscal, não é difícil serem estigmatizados como frios e calculistas, sujeitos que não pensam no bem-estar da sociedade. Vejamos dois casos nos últimos anos que evidenciam as consequências de problemas fiscais e que guardando certas ressalvas, possuem similaridades com o caso do Brasil. Grécia, Venezuela e Brasil.
O primeiro, é o caso da Grécia, cuja tragédia econômica recente tem muito a ensinar ao Brasil. Em 2009 foi anunciado que os dados fiscais haveriam sido reportados equivocadamente. O déficit não seria 3.7% do PIB e sim 15.6%. Enquanto que a dívida pública seria 129.4% e não 99.6% do PIB. A desconfiança quanto à sustentabilidade fiscal estava montada, a qual, com a crise financeira de 2008 rapidamente se tornou um problema de insolvência. A dívida não seria paga, os gregos não conseguiriam pagar a conta.
O problema grego está intimamente ligado a um desenho de seguridade social insustentável. É caro, gera desigualdade e se mostrou ineficiente ao não servir de colchão social após a crise. A previdência social grega representava em 2010 mais de 12\% do PIB, com projeção para 2060 de mais de 24\% do PIB. Não só isso, as aposentadorias privilegiavam alguns grupos da sociedade, principalmente funcionários públicos em aposentadorias precoces e taxa de reposição que chegava a 120\% do último salário – lembra a algum país?[2].
O professor Platon Tinios estudou a previdência grega em “Vacillations around a pension reform trajectory: time for a change? “. O desenho do sistema grego nunca foi um exemplo para nenhum país. Como ele mostra, enquanto os outros países europeus fizeram profundas discussões sobre os seus sistemas na década de 1960 e de 1990, quando a população europeia envelhecia rapidamente. Os gregos adiaram o encontro com a realidade, mantendo um sistema que já seria difícil de sustentar para a Grécia de 1950.
O resultado da Grécia não poderia ser mais ilustrativo. A renda média da população caiu mais de 24% de 2009 até 2013; sendo mais de 50% entre os mais pobres; as pensões já concedidas foram reduzidas em 33%. O caso grego ensina que não discutir o problema previdenciário pode sair caro demais. Uma tragédia.
O segundo caso que ilustra os drásticos efeitos advindos de problemas fiscais, é o da Venezuela. A Venezuela possui uma das maiores reservas de petróleo do mundo. O que alguns chamam de “maldição dos recursos naturais”, fez com que o país não só dependesse das receitas geradas pela sua petrolífera, a PDVSA, como também que os outros setores da economia perdessem competitividade. O baixo nível de receitas devido à redução dos preços no mercado de petróleo gerou pressão na dívida pública (interna e externa) da Venezuela. Para pagar a dívida, imprimiram moeda, o que resultou em inflação. Em seguida, na tentativa de combater a inflação, houve controle de preços, o que agravou (em muito) o processo inflacionário, que chegou ao patamar de hiperinflação.
O resultado do problema venezuelano é de uma destruição imensa de riqueza, maior taxa de inflação e de criminalidade do planeta. A Associação de Professores do país declarou recentemente, que uma família necessita de 16 salários mínimos para alimentação básica. A deterioração na saúde pública é tão grande, que o número de mortes de recém-nascidos mais do que dobrou e de mães quintuplicou. Um verdadeiro colapso social.
Após analisar países com graves problemas fiscais, Grécia e Venezuela, é possível observar com maior propriedade a crise fiscal do Brasil. A crise brasileira é proveniente da condução de política econômica desde a crise de 2008, que intensificou problemas estruturais da economia, em especial, quanto à sustentabilidade da dívida pública. Apesar do país ter espaço fiscal para enfrentar a crise, testes estatísticos mais rigorosos sinalizam que em 2009 houve uma convicção diferente na condução da política econômica. Naquele momento, não só as medidas estruturantes que o país necessitava não foram implementadas, como também a política fiscal se tornou mais incerta agravando o problema estrutural de endividamento.
O Brasil aprendeu a duras penas, que imprimir dinheiro para pagar a conta não é um instrumento nada recomendável. O Plano Real equacionou o problema da inflação descontrolada, mas, não foi capaz de resolver o problema de endividamento público. Dessa vez o caminho escolhido foi o da complexidade tributária, para financiar o tamanho da máquina pública. Gilberto do Amaral, João Olenike e Letícia do Amaral mostraram que em 25 anos o Brasil criou 309,147 novas normas, sendo 31 por dia, as quais em média tem 3,000 palavras. São 92 taxas, uma firma no Brasil deve se adequar a 3,512 normas para entrar em funcionamento. No relatório “Doing Business” de 2015, o país está na pior posição da amostra em número de horas que uma empresa de tamanho médio, sendo 2,600 horas dispendidas com burocracia tributária. O segundo colocado é a Bolívia, com 1,025 horas (menos da metade do Brasil).
A incerteza gerada pelo excesso de gastos encurta nosso horizonte de tempo (ou aumenta a taxa de juros), não nos permite planejar e tocar uma agenda de crescimento e desenvolvimento no Brasil. Retornando para agosto de 2015, quando o governo encaminhou ao congresso um orçamento deficitário. O risco de calote da dívida explodiu, o câmbio chegou a quase R$ 4 no mercado à vista e R$ 6 no mercado futuro, a taxa de juros apontou para 17% no contrato de Depósitos Interbancários de longo prazo. Nada mais natural que as perspectivas de investimento e crescimento irem para o chão, levando o país à maior crise econômica de sua história.
Os gastos do governo crescem 6,5% acima da inflação desde o Plano Real[2] – é tarefa hercúlea encontrar alguma economia que cresça a essa taxa de forma consistente, sem poupança. O estado não cabe no orçamento. Em parte esse problema é gerado pela Constituição Federal de 1988, que com a motivação de compensar a dívida social acumulada durante o regime militar, garante em lei, direitos para diversos estratos sociais sem se atentar para o financiamento dos mesmos.
Isso nos sugere que não é culpa de um único governo. A política fiscal no Brasil está amarrada pelas regras, sendo constantemente expansionista. A rigidez de 92% do orçamento piora a capacidade do governo reverter a dívida pública crescente e consequentemente a sustentabilidade da dívida pública. Nem mesmo países vizinhos como Argentina (85%), Colômbia (85%) ou Chile (65%), não tem um tamanho tão grande de orçamento carimbado. O que reduz a capacidade de o país financiar investimentos e aumenta a vulnerabilidade do mesmo a crises.
Testes estatísticos mais rigorosos indicam que a insustentabilidade fiscal estava mascarada pelo alto de crescimento econômico desse período em decorrência do boom de commodities e da economia internacional. Mas como caracterizar a dívida pública como sustentável ou não?
O Professor Henning Bohn provou em 1998 no artigo “The behavior of us public debt and déficits”que analisar apenas a trajetória da dívida pública pode mascarar a situação real. Em 2007, Bohn propôs uma maneira mais consistente de testar a sustentabilidade da dívida pública, jogando a responsabilidade no governo em exercício e sua capacidade de reverter o descalabro fiscal. Assim, a pergunta relevante passa a ser, dado as características institucionais e capacidade de articulação política, os governos no Brasil tiveram chances de manter a dívida pública em um patamar que não gerasse distorções econômicas desde 2000?
No 1º capítulo de “Três ensaios sobre estabilidade de séries econômicas: Métodos de estimação econométrica de volatilidade”, trabalho que realizei sob a tutela do Professor Sinézio Maia. Usamos método que possibilitou captar mudanças no comportamento dos governos ao longo do tempo. Encontramos que desde 2000, os governos não foram capazes de compensar o aumento da dívida com superávit suficiente para estabilizar a relação dívida/PIB, sendo a política fiscal, na maior parte do tempo expansionista. Não só isso, os períodos em que a trajetória da dívida se torna mais comportada podem ser atribuídos ao comportamento cíclico do PIB e não à capacidade dos governos em reverterem o endividamento.
Na literatura, outros autores fizeram exercícios similares. Andrei Simonassi, Ronaldo Arraes e Augusto Sena em “Fiscal reaction under endogenous structural changes in Brazil” encontraram que houve uma mudança no comportamento do governo a partir de 2003, sendo o governo cada vez mais responsável até 2008. Os autores atribuem essa mudança às reformas realizadas desde 1994. Luporini “Sustainability of brazilian fiscal policy, once again: corrective policy response over time” realizou a análise até 2011 chegando ao mesmo resultado. Já Raí Chicoli e Siegfried Bender em “Sustentabilidade da dívida pública brasileira: Uma análise sob diversos conceitos de superávit primário e endividamento” estenderam a análise até 2014, encontrando resultados em linha com os que encontramos.
O que as evidências nos dizem, é que não há só um problema estrutural, como também a política fiscal se tornou mais incerta a partir da crise financeira do subprime em 2008. Houve o abandono por parte do governo da convicção de que as regras de superávit primário seriam importantes para a estabilidade macroeconômica.
Daí a importância da adoção de regras de controle da política fiscal, como o teto dos gastos. O objetivo delas é evitar que se gaste em excesso, principalmente em momentos de bonança ou que grupos de pressão garantam em lei, privilégios que tomam todo o orçamento, beneficiando apenas minorias. Com isso, se espera que se assegure uma atitude republicana e responsável por parte dos políticos, estabilidade macroeconômica e sustentabilidade fiscal.
A regra do teto dos gastos adotada pelo Brasil não é a única, nem a mais usada pelos governos ao redor do mundo. Mas provavelmente, é uma das mais fáceis de comunicar, implementar e monitorar[3]. Evitando que os gastos cresçam em termos reais, o governo gera previsibilidade para investidores e consumidores, traz estabilidade das principais taxas da economia, como câmbio, juros e inflação. Ao mesmo tempo em que garante uma redução do tamanho e distorções da máquina pública.
O Banco Mundial estima que sem teto de gastos, o saldo primário e a dívida pública manteriam sua trajetória explosiva, chegando a 5% de déficit fiscal e aos incríveis 150% de endividamento. Obviamente, um colapso social ocorreria antes disso, como no caso venezuelano ou grego. Com o teto dos gastos, o ajuste exigido para equilíbrio das contas públicas é de 0,2% em 2017; 0,5% em 2018; e 0,6% nos anos seguintes até 2030. Sacrifício que representa um desafio para a sociedade.
Mas sem reforma da previdência, o teto dos gastos não representa avanço algum. Os gastos com previdência social não são só os mais expressivos no orçamento, como também rápido envelhecimento da população é o fator que dá velocidade ao crescimento das despesas. Com teto dos gastos, se a reforma não for endereçada, em 2030 tomará todo o orçamento da união.
Dívida pública sustentável é um instrumento fundamental para que as políticas públicas sejam ofertadas à população de maneira consistente. O problema é: estado brasileiro gasta mal e tributa mal, o que o torna uma máquina de desigualdade, ineficiências e crescimento baixo. Parafraseando Gustavo Franco em uma entrevista a que se referia ao problema inflacionário no Brasil: “Sabemos porque deu errado, e deu errado por causa do estado”. O sintoma mudou, a doença é a mesma.
Felipe Araujo de Oliveira
Formado em economia pela UFPB, e mestrando em economia aplicada. Querendo resolver os problemas de modelagem que nos levaram à crise do Subprime em 2008, se apaixonou por risco financeiro e macroeconomia.
[1] Esse argumento usado pela então Ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, é a sua resposta à proposta defendida pelos então Ministros da Fazenda e Planejamento, Antonio Palocci e Paulo Bernardo e pode ser conferido aqui: <<http://terracoeconomico.com.br/e-se-tivessemos-ouvido-o-palocci>>. A visão do “gasto é vida” surge da convicção de que gasto público é autofinanciado. Isto é, se o gasto público gerasse crescimento econômico. Isso é verdade em alguns momentos do ciclo econômico.
[2] Ver texto “O Ajuste Inevitável” <<https://mansueto.files.wordpress.com/2015/07/o-ajuste-inevitc3a1vel-vf_2.pdf >>, com autoria de Mansueto Almeida, Marcos Lisboa e Samuel Pessôa.
[3] Em artigo do FMI chamado, “Fiscal Rules in Response to the Crisis – Toward the ‘Next-Generation’ Rules”, os pesquisadores Andrea Schaechter, Tidiane Kinda, Nina Budina e Anke Weber listam pelo menos 5 tipos de regras fiscais. Os países ao redor do mundo tendem a implementar regras de equilíbrio orçamentário e regras de dívida, e não regra de gastos. Quanto à facilidade de comunicação, me refiro à previsibilidade da regra adotada em termos de impacto no orçamento público. Existem regras mais complexas, atreladas ao ciclo econômico. Essas têm seus impactos difíceis de prever porque dependem do crescimento da economia.
[4] É importante ressaltar que o caso grego, apesar de apresentarem características em comum, não são iguais. A Grécia é um país rico, ou seja, com renda per-capita elevada. Ademais, por fazer parte de uma união monetária, a política fiscal é única ferramenta que o país tem para estabilizar a economia.