Opinião

Crime e aborto: E a “mágica” solução da criminalidade americana

16 jan 2017, 14:52 - atualizado em 11 set 2019, 16:55

Victor Candido é economista do Terraço Econômico

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Cinquenta e nove mil e seiscentos e vinte e sete, esse número enorme é a última estatística disponível[1] para a quantidade de homicídios no Brasil. É o maior número da história, corresponde ao ano de 2014, e não será nenhuma surpresa se o número de 2015 vier bastante parecido ou até maior. Homicídios no Brasil matam mais anualmente do que a guerra na Síria. Porém, certos problemas graves de segurança pública, que parecem não ter solução, podem ser amenizados ao pensarmos além de presídios e força policial. O presente artigo utiliza o caso dos Estados Unidos como exemplo, que em 20 anos voltou a ter taxas moderadas de criminalidade após atingir um pico assustador.

Por volta dos anos 1980, a criminalidade nos Estados Unidos parecia completamente fora de controle, situação parecida com a brasileira hoje. Especialistas em políticas de segurança pública diziam que o país se aproximava do caos completo, de uma guerra civil. Até que em meados de 1989 a taxa de crimes começou a cair e tal queda se acelerou durante a década de 90, espantando até mesmo os analistas mais otimistas. A queda foi tamanha, que no começo dos anos 2000 a taxa de criminalidade estava próxima das taxas encontradas nos anos 1950! O gráfico abaixo, retirado do artigo que vamos discutir a seguir, é bastante ilustrativo.

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Naturalmente diversas teorias começaram a surgir no começo dos anos 2000 para explicar a vertiginosa queda da criminalidade em todo o país. Na academia, diversos trabalhos foram publicados com inúmeras explicações que variavam desde novas estratégias da polícia até mudanças na estrutura dos mercados de drogas. A tabela abaixo traz os principais trabalhos publicados em revistas acadêmicas de referência e com grande número de acessos no repositório LexisNexis:

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Porém, nenhuma das explicações se sustentam muito quando expostas a testes de robustez estatística. Algumas chegam até a apresentar alguma significância, mas no limite explicam pouco ou quase nada da grande redução na criminalidade.

Começando pelo desempenho geral da economia. Não há nenhuma relação empiricamente comprovada entre uma economia mais saudável e uma menor taxa de crimes; existem estudos[2], inclusive, que dizem exatamente o oposto, ou seja, que homicídios possuem correlação positiva com o ciclo econômico, de modo que quando a economia cresce, crescem os assassinatos.

Quanto a correlação entre o aumento no número de execuções em penas de morte e a taxa de criminalidade, o resultado empírico também é inconclusivo. Durante a década de 90, apenas 478 pessoas foram executadas em prisões americanas. Além de o processo ser lento e demorado, ele aparentemente não colocava medo o suficiente nos criminosos, os impedindo de cometer crimes violentos.

Novas práticas policiais, como a política de tolerância zero da Polícia de Nova York, implantada pelo então prefeito Robert Giuliani, tampouco são capazes de explicar parte relevante da queda, bem como o maior controle na venda de armas (checagem de antecedentes criminais).

Práticas que obtiveram impacto marginal no número de crimes foram o aumento do contingente policial e penas mais duras e longas. O contingente policial no fim dos anos 80 era muito baixo, uma vez que a maior parte das forças policiais americanas ficaram quase duas décadas recrutando menos policiais do que o recomendado – logo, um aumento grande de policiais acabou impactando a taxa de criminalidade. Mas, assim como as penas mais longas, o impacto foi marginal.

Após todas essas tentativas de explicação, um trabalho chamado The Impact of Legalized Abortion on Crime[3] (em bom português: O Impacto da legalização do aborto sobre o crime)de dois economistas da Universidade de Chicago, Steven Levitt e John Dunohue, propunham que a legalização do aborto quase 30 anos atrás fora o maior responsável pela rápida queda da criminalidade em todo o pais.

Em 1970, apenas cinco estados americanos permitiam o aborto. Em 1973, após o emblemático caso Roe vs. Wade[4], a suprema corte americana (análoga ao nosso STF) legislou sobre o tema, tornando o aborto legal em todo o território americano.

Para Levitt, autor do artigo, após o tratamento dos dados e diversos testes estatísticos, não há dúvidas de que a acelerada queda na criminalidade foi um efeito de segunda ordem da liberação do aborto nos anos 70. A explicação é simples e dura: crianças que não nasceram eram aqueles que iriam passar suas infâncias em ambientes de risco. Grande parte das mulheres que fizeram abortos apresentavam, simultaneamente ou não, as seguintes características:

  • Adolescentes
  • Pobres
  • Solteiras

Segundo outro estudo[5], crianças que viriam a nascer com mães que se encaixavam nos critérios acima listados teriam 50% mais chances de viver na pobreza e 60% mais chance de viver com apenas um dos pais. Na mesma linha, de acordo com estudo empírico realizado por Comanor e Phillips[6], vivenciar uma infância pobre e viver com apenas um dos pais são fatores indicativos das chances de um indivíduo cometer um crime no futuro, bem como o baixo nível educacional da mãe.

O mais interessante é o fato que todos os fatores listados acima, que indicam uma maior propensão a cometer crimes, foram as mesmas justificativas dadas pelas mulheres para fazer um aborto – ou seja, as mães evitaram ter filhos em ambientes que poderiam colocar o desenvolvimento das crianças em risco.

A tabela e os gráficos abaixo mostram o impacto estimado por Levitt da legalização do aborto sobre as taxas de criminalidade nos EUA:

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Nesse contexto, é importante ressaltar que, além do efeito na criminalidade, há um importante ganho de saúde pública quando da legalização do aborto. Nos EUA, o número de mortes relacionadas a abortos feitos de forma perigosa foi a quase zero. O valor de um aborto antes da legalização era de aproximadamente 500 dólares – na época um valor muito elevado; após a legalização, o valor caiu por um fator de 5, para 100 dólares, um valor que democratiza a prática para mulheres mais pobres, lembrando que nos Estados Unidos não existe serviço gratuito e universal de saúde como o SUS no Brasil.

É notável que a permissão aos abortos não se refletiu em uma explosão de tais ocorrências. Em 1974 foram realizados 1 aborto para cada 4 nascimentos, em 1980 1 para cada 2,25 nascimentos. A taxa se estabilizou no patamar da década de 80, como mostra o gráfico abaixo retirado do estudo, não apresentando crescimento explosivo como muitos dizem que pode acontecer caso o aborto seja liberado em uma sociedade.

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O artigo de Levitt é um esforço louvável, e vale a pena ser lido na íntegra. A grande conclusão é de que a legalização do aborto gerou um benéfico efeito de segunda ordem, que foi o grande responsável pela queda da criminalidade ao redor dos Estados Unidos.

Em um momento em que se enfrenta uma das piores crises do sistema prisional desde o massacre do Carandiru, quando a maior parte dos presos são jovens e sem estudo, e se encaixam perfeitamente no perfil dos jovens de risco do estudo de Commanor e Phillips, imaginar que a legalização do aborto possa gerar um efeito de segunda ordem na segurança pública similar aquele gerado nos Estados Unidos não é algo fora de realidade.

OBSERVAÇÃO: Estudos científicos nem sempre refletem a pura realidade. O autor quis apenas mostrar um estudo, interessante, sobre como políticas públicas interagem entre si. E infelizmente temas espinhosos do ponto de vista moral e religioso, devem ser discutidos sim em uma sociedade civilizada e democrática.

 

Notas:

[1] Dados do Atlas da Violência, o qual a última edição disponível é sobre o ano de 2014. Essa pesquisa é  feita em parceria entre o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), com base no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde.

[2] Freeman, Richard. “The Labor Market” capitulo do livro “Crime”. São Francisco (1995).

[3] Working Paper 8004 NBER – National Bureau of Economic Research, disponível em: http://www.nber.org/papers/w8004.pdf

[4] Em 1970, as advogadas recém graduadas da Faculdade de Direito da Universidade do Texas, Linda Coffee e Sarah Weddington, abriram um processo no Texas representando a Norma L. McCorvey (“Jane Roe“). McCorvey argumentava que sua gravidez era resultado de uma violação. O fiscal de distrito do Condado de Dallas (Texas), Henry Wade, representava o Estado do Texas, que se opunha ao direito a aborto. O Tribunal do Distrito decidiu a favor de Jane Roe, porém se recusou a mudar a legislação para legalização do aborto. O caso foi apelado em reiteradas oportunidades, até que chegou ao Suprema Corte dos Estados Unidos. Esta, finalmente, em 1973, decidiu que a mulher, amparada no direito à privacidade – sob a cláusula do devido processo legal da “décima quarta emenda” – podia decidir por si mesma a continuidade ou não da gravidez. Esse direito à privacidade era considerado um direito fundamental sob a proteção da Constituição dos Estados Unidos, e portanto nenhum desses Estados podia legislar contra ele.

[5] Gruber, Johnatan, P.B. Levine and D. Staiger “Abortion Legalization and Child Living Circunstances: Who is the Marginal Child”. Quarterly Journal Of Economics (1999) – 263-291.

[6] Comanor, William S. and Llad Phillips, “The Impact of Income and Family Structure on Delinquency”. Manuscrito não publicado, Universidade da Califórnia Santa Bárbara (1999)

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