Créditos de carbono são licença para poluir?
Por Lucas Vasques Victor e Denny Thame*
Entre os dias 11 e 14 de abril de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva realizou sua primeira viagem à China desde que tomou posse pela terceira vez, em janeiro. A visita oficial visava estreitar ainda mais as relações bilaterais com o principal parceiro comercial brsileiro.
Dentre os temas discutidos, destaque para a amplia discussão da pauta ambiental e das mudanças climáticas. Como resultado, os governos de Brasil e China assinaram 15 acordos, todos pelo menos tangenciando uma política econômica mais sustentável.
Entretanto, a repercussão interna desses acordos apontou para falta de transparência e de detalhamento dos planos que efetivam os protocolos e memorandos acerca dos financiamentos verdes, firmados tanto pelos governos quanto pela iniciativa privada brasileiras e chinesas. Com isso, levantou-se um debate sobre a maneira que esses países pretendem atender a agenda ambiental.
Merece especial atenção a declaração do presidente da Apex, Jorge Viana, admitindo que há e cresceu o desmatamento na Amazônia. Além disso, houve críticas ao desenvolvimento de um comércio bilateral de créditos de carbono, como se o Brasil estivesse vendendo licença de poluir à China.
Entenda os créditos de carbono
Qualquer um minimamente comprometido com prevenir a iminência de extinção da espécie humana reconhece que a temática é complexa. Não é possível encontrar soluções simples.
Por isso, é preciso haver acordos e compromissos entre grandes emissores, países e empresas. Da mesma forma, é fundamental que haja provedores de soluções tecnológicas, técnicas e biológicas.
Ou seja, fazer política nacional e diplomacia neste contexto é como um jogo multinível. Assim, qualquer jogada em um tabuleiro afeta os demais.
Por um lado, o Brasil possui um imenso potencial para promover políticas de investimento em sequestro de carbono. Isso ocorre graças à sua extensão territorial de florestas, principalmente amazônica; matriz energética limpa; um enorme potencial inexplorado em energias renováveis (bioenergia, eólica, solar) e por meio de uma agricultura tropical de baixo carbono.
Porém, até o momento, a melhor forma que existe de sequestrar o carbono que está na atmosfera causando as mudanças climáticas são plantas crescendo.
Paradoxalmente, essa melhor solução é a maior causa das emissões de gases poluentes no Brasil. Portanto, aqui, o desastre são queimadas, desmatamento ilegal, grilagem, mineração clandestina e o desafio de implementar as leis em um país de proporções continentais. Enquanto isso, o resto do mundo enfrenta o desafio da transição energética.
Por isso, é uma falácia achar que esse capital megadiverso riquíssimo está sendo depredado para produzir commodities agrícolas e desenvolvimento econômico. Pelo contrário, os pujantes do agronegócio têm uma cadeia produtiva cada vez mais rastreável e assumiram compromissos voluntários de descarbonização.
Além disso, há o potencial de biodiversidade que está sendo perdido. Mais que isso, que poderia ser aproveitado como bioinsumos para produtos de altíssimo valor agregado. Isso sim geraria desenvolvimento econômico.
Negócio da China?
Em suma, a pretensão do governo brasileiro em vender créditos de descarbonização para a China, e a reação contrária de alguns grupos demonstra a ambiguidade de uma agenda verde. De qualquer forma, o crédito de carbono não é uma licença para poluir.
Ao contrário, trata-se de uma das formas de precificação de uma externalidade positiva. Externalidade é como os economistas chamam os efeitos indiretos. Trata-se de um tipo de falha de mercado, uma situação em que deixada a atividade do mercado livre, o resultado será em detrimento do interesse da sociedade.
Assim, uma das formas de se prevenir esse efeito deletério ao bem-estar de todos é por meio da precificação. Tanto das negativas, como fazer os agentes econômicos pagarem pela emissão de gases de efeito estufa que suas atividades geram; como também das positivas, de remunerar o benefício que aqueles que deixaram de emitir trouxeram para todos.
Exemplos menos poluentes
São várias as formas possíveis de se efetivar essa precificação dos créditos de carbono. A mais direta é a tributação da emissão propriamente dita.
Nela, a hipótese de incidência seriam as emissões; ou dos produtos que geram emissões, que contenham hidrocarbonetos. Este é o caso da nossa CIDE combustível.
Outra forma é criar um mercado regulado de licenciamento de emissões. O governo decide quanto permite de emissões para cada setor e os agentes econômicos quando atingirem essa meta são obrigados a remunerar projetos de descarbonização. Isso faz com que as emissões extras compensem as que deixaram de ser emitidas por outros. Nessa modelagem está o ETS europeu.
A terceira maneira é o mercado voluntário de carbono. Esse é bem diverso, com créditos oriundos de projetos de descarbonização de diferentes tipos.
Portanto, nem sempre com a mesma qualidade e cujo crescimento vai depender em grande parte do compromisso dos agentes econômicos em assumir metas de descarbonização. Aí, é preciso reporta-se segundo uma das iniciativas, a SBTi, que é capitaneada pelo pacto global da ONU. Atualmente há 2.253 empresas, correspondendo a um terço da capitalização de mercado global.
A comercialização desses créditos voluntários pode se dar em mecanismos: internacionais, como o mecanismo de desenvolvimento limpo que seguirá os avanços da implementação do artigo 6.4 do Acordo de Paris; regionais, nacionais ou subnacionais, como o mercado da Califórnia. Há, ainda, o que é mais comum, certificadoras independentes, como no registro VCS da Verra e Gold Standard.
CBIOS como créditos
No Brasil, importante mencionar, há também os CBIOs (Créditos de Descarbonização), criados pela Renovabio e negociados no mercado de balcão da B3.
A política nacional de biocombustíveis criou o mandato de compra de CBIOs para as distribuidoras de combustíveis fósseis. Elas devem comprovar o cumprimento das metas obrigatórias de descarbonização, pela compra dos CBIOs. Outras empresas também podem comprar CBIOs, empresas que tenham assumido compromissos voluntários de descarbonização, para comprar os CBIOs para aposentá-los (compensar suas emissóes), ou agentes do mercado para especular sobre a valorização e estocar CBIOs esperando para vendê-los com melhor preço.
Créditos de carbono assim são transferíveis e podem ser negociados em mercados financeiro ou específicos. Nesse caso, os compradores são nações e empresas que não atingiram suas respectivas metas de redução de emissões de gases do efeito estufa (GEE).
Isso acontece quando esses agentes ultrapassam os limites estabelecidos. Ou, ainda, querem voluntariamente compensar as emissões da cadeia produtiva.
A China é uma forte compradora de créditos de carbono. O país asiático regulamentou o mercado nacional em 2021 e logo assumiu o papel de o maior mercado de carbono do mundo. Já o Brasil está em vias de também regulamentar o seu mercado.
Mercado de créditos de carbono no Brasil
Há basicamente três leituras jurídicas diferentes a respeito da criação do mercado de carbono brasileiro. A primeira é sob a ótica dos direitos fundamentais; a segunda, pelo direito econômico; e a terceira, sob o ponto de vista do direito concorrencial.
Pela primeira, a extinção iminente e pobreza extrema são questões imorais. Ou seja, não podem ser toleradas pelo sistema jurídico. Assim não é cabível metas gradativas de longo prazo ou ferramentas econômicas para lidar com isso. O uso de fontes fósseis é tido como ilegal e precisa receber todo o aparato de políticas públicas e de coerção disponível.
Já para a segunda, as ferramentas econômicas são essenciais para implementar as mudanças de valores, criando incentivos à transição para uma economia de baixo carbono. Essa corrente é cética a respeito da capacidade de efetivação do direito, principalmente em virtude dos custos altos de fiscalização em grande escala. Além disso, reconhece que sem uma economia viável as regiões de maior relevância para políticas socioambientais ficam à mercê do crime organizado e do extrativismo de baixo valor agregado.
Por fim, uma terceira corrente teme os efeitos da participação do Brasil nos mercados de carbono, haja vista o grande potencial, especialmente no setor de uso do solo, de gerar altos volumes de reduções de emissões de GEE a custos relativamente baixos, saturando os mercados já existentes.
Com isso, dependendo da visão adotada, muda-se a percepção em relação à parceria Brasil-China pela descarbonização. Porém, em nenhuma das hipóteses, o mercado de carbono pode ser visto como uma licença à poluição. Da mesma forma, também não é visto assim o princípio do poluidor-usuário-pagador adotado pela legislação ambiental brasileira.
Assim, o Brasil tem a princípio muito a ganhar com a venda de carbono para China. No entanto, tem um grande desafio institucional de implementação de leis e políticas bem feitas na área ambiental, além da reestruturação da agropecuária para deixar de ser uma das fontes de emissão e passar a sequestrar carbono.
*Lucas Vasques Victor e Denny Thame pesquisam bioeconomia circular sustentável na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo