“Contratos inteligentes não são contratos” e outras questões jurídicas de cripto
Um relatório dá esclarecimento sobre a gama de dilemas jurídicos apresentados pela tecnologia de blockchain.
Pesquisadores da Queen Mary University, London University e Cambridge University publicaram um documento que sugere que legisladores vão ter que se encarregar de resolver questões jurídicas que possam afetar tecnologias de blockchain para certificar que a tecnologia se torne parte integral dos setores público e privado no futuro.
O blockchain e a lei
O relatório, intitulado “Blockchain desmistificado: uma introdução técnica e jurídica para registros distribuídos e centralizados”, foi escrito por Jean Bacon, Johan David Michels, Christopher Millard e Jatinder Singh.
O documento apresenta os leitores aos registros digitais distribuídos e centralizados, tanto de um ponto de vista técnico quanto jurídico.
É uma ótima leitura para aqueles que são novos no universo da tecnologia de blockchain já que fornece uma compreensão fácil e detalhada sobre as redes de blockchain e os criptoativos.
No entanto, o mais importante é o aprofundamento dos pesquisadores sobre os aspectos jurídicos das redes de blockchain e como podem ou não cumprir com diferentes leis.
De acordo com os autores do relatório, para as redes de blockchain funcionarem de uma maneira complacente com a lei, vão precisar levar várias leis em consideração, incluindo o direito contratual, o direito de proteção de dados, o direito de valores mobiliários, o direito de propriedade, propriedade intelectual e, por fim, direito societário.
Contratos inteligentes não são contratos “legais”
Um grande desafio para a ampla adesão comercial e pública do setor de blockchain é que essas redes precisam cumprir com as leis. Isso se torna ainda mais evidente quando ocorre o uso de contratos inteligentes, já que não existe uma estrutura que forneça contratos inteligentes com validade jurídica.
O termo “contrato inteligente” é legal e cativamente, mas, na realidade, é muito confuso, pois não é um contrato jurídico (em muitas jurisdições), e sim um código automatizado de autoexecução.
Isso foi discutido pelo fundador da Ethereum, Vitalik Buterin, que tuitou que, em vez de chamá-los de ‘contratos inteligentes’, ele “daria um nome mais chato e técnico. Talvez algo como ‘roteiros persistentes’”.
“Alguns dizem que um contrato inteligente não é uma promessa legalmente executável, mas um processo mecânico automatizado […]. O criador de um contrato inteligente vai precisar explicar sua oferta para contrapartes humanas em uma linguagem humana inteligível. Essa explicação pode formar a base do acordo entre as partes e, assim, determinar os termos do contrato”, afirma o relatório.
Blockchain e a Lei Geral de Proteção de Dados (GDPR)
Desafios jurídicos significativos para a adesão do blockchain são impostos pelas leis de privacidade e de proteção de dados. Redes de blockchain podem conter informações confidenciais, como dados pessoais, que não devem ser compartilhados com terceiros.
No entanto, em redes públicas de blockchain, é difícil evitar que o público veja todos os dados contidos no blockchain.
Analisando a Lei Geral de Proteção de Dados (GDPR, na sigla em inglês) da União Europeia, que cobre “o processamento de dados pessoais que cai no escopo territorial do governo”, pode-se dizer que os dados públicos em blockchain, como endereços de carteiras no blockchain do bitcoin, pode entrar no escopo da regulação já que são dados pessoais.
Isso poderia afetar todos os fornecedores de carteira e corretoras que fornecem serviços aos clientes europeus.
Enquanto é difícil saber como as leis sobre privacidade vão ser interpretadas e colocadas em prática, é improvável que grandes redes de blockchain globais como Bitcoin ou Ethereum sejam afetadas pela lei de proteção de dados da União Europeia por conta de sua natureza resistente à censura e distribuída.
No entanto, redes centralizadas de blockchain, criadas para propósitos específicos, vão precisar aderir a essas leis.
Felizmente, para empresas e instituições do setor público, que estão explorando registros permissionados para melhorar suas operações, o relatório descobriu que blockchains centralizados podem ser complacentes com a GDPR porque a parte que controla e processa os dados vai aderir às regras impostas.
ICOs e lei de valores mobiliários
Desde a explosão das (ofertas iniciais de moeda) ICOs em 2017, foi discutido se os tokens de ICO seriam considerados ou não como valores mobiliários.
Enquanto muitas startups utilizaram a abordagem dos utility tokens para ficarem isentas das leis de valores mobiliários, a realidade é que os investidores buscam por esses tokens na expectativa de receber um retorno ou um investimento no futuro, em vez de usarem, de fato, o token para interagir com a plataforma no seu lançamento.
“A dificuldade [em determinar se um token de ICO é um valor mobiliário ou não] está no fato de que, geralmente, as ICOs combinam elementos de investimento e utility tokens. Já que tokens podem ser utilizados para acessar o serviço, ICOs também podem fornecer aos investidores a oportunidade de lucrar com o sucesso de uma empresa ao vender tokens com lucro em mercados secundários.”
Reguladores em todo o mundo responderam a isso ao declararem que se uma ICO pode ser classificada como valor mobiliário, vai precisar ser registrada assim. No entanto, não existe nenhuma lei delineada sobre ICOs.
Para esse novo tipo de financiamento ser bem-sucedido, novas legislações podem ser úteis.
Mais questões jurídicas precisam ser respondidas
O relatório também fala sobre direito de propriedade e propriedade intelectual e como se relacionam aos criptoativos e às bases de dados de blockchain como desafios jurídicos que precisam ser resolvidos.
Além disso, propõe a questão de se as empresas autônomas descentralizadas (DAOs) são ilegais, já que constituem empresas e também se precisariam ser registradas como tal.
Se não existe nenhuma definição jurídica esclarecida para tokens digitais ou para o uso de bases de dados de blockchain, vai ser mais difícil para a tecnologia escalar, já que muitas questões jurídicas vão continuar sem resposta, criando um risco jurídico para as empresas envolvidas.
“Dada a diversidade dos possíveis designs das plataformas de blockchain, não há a possibilidade de uma análise jurídica perfeita. Em vez disso, cada aplicação da tecnologia de blockchain vai precisar ser considerada separadamente”, sugere e conclui o relatório.