Contramão do mercado: Por que o Brasil ganha livrarias físicas enquanto o varejo fecha lojas?
Na contramão do mercado, cujas operações de varejo vêm ganhando cada vez mais importância e peso no ambiente digital, as livrarias estão atravessando um momento atípico.
O momento é tão particular que contrasta com o restante do varejo: enquanto negócios a priori mais sólidos e rentáveis, como Ponto, Polishop e Imaginarium, fecham, as livrarias abrem novos pontos de venda.
Os dados sobre leitura no Brasil são escassos e confusos a ponto de justificar um movimento tão intenso de abertura de lojas. O que então poderia justificar esse movimento?
O fim da Saraiva, o enxugamento da Cultura e a saída da Fnac do Brasil:
Ao longo dos últimos cinco anos, ao menos três grandes movimentos drásticos ocorreram no mercado de livrarias no Brasil: o fechamento da Saraiva, o enxugamento da Cultura e a saída da Fnac do Brasil.
Nenhum desses acontecimentos, no entanto, foi imediato. A Fnac, que chegou a ter 12 lojas em 7 estados do Brasil, fechou o último endereço em outubro de 2018.
A Livraria Cultura, por sua vez, chegou a ter 17 lojas em 8 estados. Agora só existem duas. O enxugamento começou durante a pandemia e se estendeu até este ano.
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A Saraiva chegou a ter mais de 100 lojas e, desde que entrou em recuperação judicial (2018), vem fechando seus pontos de venda. A operação física foi completamente desmobilizada no final de setembro e a falência foi decretada pela Justiça nesta última sexta-feira (06).
Diante desse cenário em que as maiores redes foram reduzidas a praticamente nada, existe um espólio valioso a ser disputado, afinal apesar de não ser alta, a demanda por livros é maior que a quantidade de endereços remanescentes após tais fechamentos.
Disputa por espaços físicos:
A Livraria Leitura, Livraria da Vila e Livraria da Travessa são as redes que mais vêm crescendo em cima do espólio da Saraiva, Cultura e Fnac.
A Leitura, que entrou na pandemia (2020) com pouco mais de 70 lojas, agora tem 101. Segundo O Globo, a rede ainda fechou contrato com mais 9 shoppings abandonados pela Saraiva e tem planos de abrir mais 11 lojas em 2024.
Destacam-se, neste movimento, a abertura de uma grande loja de mais de 1,1 mil metros quadrados em Fortaleza, e uma outra de porte equivalente ou maior em São Paulo – inclusive, o espaço onde a Livraria Cultura mantém na Avenida Paulista é um dos desejos do CEO Marcus Teles, ainda que ele reconheça que o local seja grande demais e além do que o mercado comporta.
O momento de expansão é único. Mesmo que a maioria das lojas abandonadas ou desejadas não tenham o espaço de uma âncora (acima de 1 mil metros quadrados), nem sempre há vacância de espaços de 500 a 1 mil metros quadrados e bem localizados em shoppings.
O movimento é similar, ainda que em porte bem menor, ao que a Renner vivenciou no fim dos anos 90. A Mesbla, que faliu em 1999, chegou a ter cerca de 180 pontos de venda. Com seu fechamento, a rede gaúcha aproveitou o momento: em 90 dias, chegaram a ser inauguradas 12 lojas grandes. Para efeitos de comparação, nos primeiros 90 anos da marca, foram abertas 23.
Diferentemente de um quiosque ou uma loja satélite (de menos de 500 metros quadrados), em que há maior facilidade na prospecção de espaços, a Renner não poderia perder a oportunidade. Caso uma outra concorrente passasse na sua frente, a espera pela vacância de um outro ponto de venda equivalente poderia levar anos ou décadas – o que inclusive poderia comprometer seu plano de expansão.
Além disso, dificilmente há demanda comercial para mais que uma livraria em um shopping. Ou seja, ao perder a oportunidade de se instalar em um shopping para um concorrente, encontrar um ponto adequado deixa de ser o principal problema. O maior passa a ser a viabilidade comercial.
Novos formatos de livrarias:
Em paralelo à busca pelo espólio da Saraiva, Cultura e Fnac, um novo formato de livrarias vem se consolidando no Brasil.
Com lojas menores, focadas em livros e cafés, elas destoam totalmente do modelo da Saraiva e Fnac, que vendiam games, notebooks e até TVs. Em São Paulo, ao menos 10 livrarias de rua foram inauguradas entre o enfraquecimento e o pós-pandemia.
Lojas como a Megafauna (Copan, no centro de São Paulo) e a Ria Livraria (Vila Madalena), por exemplo, não tentam de forma alguma fazer o que a Amazon faz. Em vez de variedade, algoritmos, sistemas robustos de entrega, estas livrarias caminham em direção oposta e focam na experiência, encontros e curadoria.
A Megafauna conta com um café da chef Bel Coelho. Além de cafés, o cardápio conta com drinks e opções para brunch, almoço e jantar. Também são feitos lançamentos e debates.
A Ria, por sua vez, tem um caminho ainda mais espontâneo: além de oficinas e workshops, a livraria, que fica aberta até a meia-noite, propicia um ambiente descontraído com cervejas, petiscos e música.
O que vem por aí?
Por questões macroeconômicas e relacionadas ao comportamento do leitor brasileiro, é difícil arriscar que todo o espólio das grandes livrarias seja preenchido por completo – e mais arriscado ainda imaginar um crescimento no ambiente offline.
Também é importante delimitar que a abertura de livrarias menores é um fenômeno forte em São Paulo, mas não necessariamente se replica ao restante do país.
O Brasil tem cerca de 3 mil livrarias. Buenos Aires, capital da Argentina, conta com 620. A diferença é que o Brasil tem 214 milhões de habitantes – o que gera uma proporção de uma livraria para cada 70 mil, enquanto Buenos Aires tem cerca de 3 milhões – ou seja, uma livraria para cada 4,8 mil habitantes.
Existe um potencial enorme por aqui, ainda que, diferentemente de uma loja de roupas ou fastfood, o crescimento exponencial do número de livrarias só vá acontecer quando houver uma mudança estrutural na percepção da sociedade do valor do livro e da leitura. E esse é um trabalho que não é feito em um ano ou em um mandato político, mas sim por gerações.