Colhido por escravos: café alimenta crise no Brasil
Com o fim do período de colheita de café, auditores-fiscais do trabalho se apressaram para chegar a duas extensas plantações de Minas Gerais com um objetivo: resgatar trabalhadores da escravidão.
O comboio, escoltado pela Polícia Rodoviária Federal, iniciou a ação bem cedo, numa manhã de agosto, no Estado que cultiva mais da metade dos grãos no Brasil – o maior exportador de café do mundo.
A Thomson Reuters Foundation acompanhou agentes em uma operação nos campos, à procura de catadores de café agachados em meio a inúmeras fileiras de plantas exuberantes.
Os auditores-fiscais sabem que precisam agir rapidamente, pois os capatazes ordenam que os trabalhadores fujam ao primeiro vislumbre de funcionários do governo, e usam o WhatsApp para enviar alertas.
No final do dia, eles já tinham inspecionado duas plantações e encontrado 59 trabalhadores – inclusive crianças de 13 anos de idade – todos sem documentos, mal remunerados e sem os equipamentos de segurança exigidos por lei.
“Os trabalhadores não tinham direito algum”, afirmou Marcelo Campos, o auditor-fiscal do trabalho que coordenou as operações.
Os empregados sabiam que estavam sendo explorados, mas não acreditam que tenham outra opção em um país cuja pobreza cresce a cada dia e os empregos são escassos.
“Não tem outro jeito”, disse um deles, recusando-se a se identificar para não perder oportunidade de trabalhar em outra das milhares de plantações do Estado, que abrigam mais de 245.000 trabalhadores.
“Valer a pena não vale, não. Mas a gente é fraco, né?”
Manchado pela Escravidão
Uma investigação da Thomson Reuters Foundation ao longo de seis meses revelou a ampla presença de trabalho escravo, grande parte sem controle, na bilionária indústria brasileira de café, apesar de anos de esforços para sanear o setor – realidade que agora pode colocar as vendas em risco.
Dados obtidos com exclusividade, análise de registros públicos e dezenas de entrevistas revelaram que o café produzido com trabalho escravo recebia o selo de boas práticas de dois dos principais sistemas de certificação e era vendido a preços altos para grandes marcas, como Starbucks e Nespresso.
Auditores-fiscais do trabalho afirmam que sua ação se encontra limitada pela falta de pessoal, verbas e vontade política – e temem que os abusos aumentem, apesar do crescimento da demanda dos consumidores por produtos livres de trabalho escravo.
O procurador do trabalho Mateus Biondi se disse alarmado com o alto número de investigações abertas nos últimos anos, mas que ainda assim não correspondem à verdadeira escala do problema.
“Os números assustam”, disse Biondi, chefe da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) em Minas Gerais, se referindo a dados revelados pela Thomson Reuters Foundation que mostram uma média de 25 investigações em fazendas de café por ano desde o início de 2014.
Grupos da sociedade civil, sindicatos e parlamentares temem que a reputação da indústria cafeeira brasileira seja prejudicada no cenário global caso as tentativas de impedir trabalho escravo continuem a fracassar.
“Desde 2016, começamos uma discussão com o setor já visualizando que este tema de violação de direitos humanos, especialmente trabalho escravo e infantil, estaria despertando a atenção do mundo”, disse Mércia Silva, diretora da InPACTO, uma das principais organizações não governamentais de combate ao trabalho escravo.
“O que está se comprovando agora”.
A Thomson Reuters Foundation descobriu, por intermédio de fontes, que neste ano as plantações de café do Estado atraíram a atenção de funcionários aduaneiros dos EUA que podem bloquear a importação de produtos associados ao trabalho escravo, o que provoca temor sobre o futuro do comércio com o maior comprador do Brasil.
A Fiscalização de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA (CBP, na sigla em inglês) reuniu-se com auditores-fiscais e procuradores do trabalho em Minas Gerais este ano – acredita-se que tenha sido a primeira reunião desse tipo, de acordo com as fontes – para discutir o setor.
Os funcionários da CBP podem bloquear qualquer mercadoria que eles suspeitem ter sido fabricada com trabalho forçado e, recentemente, aumentaram seus esforços ao impedirem várias importações, incluindo tabaco do Malaui e ouro de minas artesanais na República Democrática do Congo.
Duas fontes brasileiras presentes em diferentes reuniões com funcionários da CBP expressaram preocupação com a possibilidade de que algumas exportações de café sejam interrompidas.
“Não somos ingênuos, estamos cientes de que há essa possibilidade”, afirmou uma das fontes, que pediu anonimato.
Dois funcionários norte-americanos confirmaram as reuniões. Uma fonte da CBP disse que não poderia discutir “investigações potenciais ou em curso”.
“O governo de Minas tem ciência da preocupação dos Estados Unidos da América e de outros países importadores, tanto em relação ao café quanto a outros produtos”, disse um porta-voz do governo estadual.
Risco de reputação
A gigante norte-americana Starbucks, a Nespresso, sediada na Suíça, e a Nucoffee, brasileira, usaram plantações de café que, de acordo com as investigações dos fiscais, exploraram trabalhadores nos últimos anos.
Questionadas a respeito dessas descobertas, as empresas – dois nomes globais de peso e uma grande empresa nacional – disseram estar comprometidas com o combate ao trabalho escravo, atuando para que os produtores melhorem suas práticas trabalhistas e evitem mão de obra escrava.
A Rainforest Alliance, uma organização sem fins lucrativos de alcance mundial, que certifica fazendas como livres de trabalho escravo, afirmou que está pensando em mudar sua estratégia para aumentar o número de auditorias sem aviso prévio e visitar mais fazendas.
O governo de Minas Gerais – que também possui um sistema de certificação – disse que está monitorando processos movidos por procuradores do trabalho contra fazendas já certificadas, depois que a investigação da Thomson Reuters Foundation constatou que três delas eram suspeitas de terem violado leis trabalhistas.
O Ministério da Economia, que englobou a pasta do Trabalho no governo do presidente Jair Bolsonaro, afirmou que, no ano passado, começou a discutir formas de melhorar as práticas trabalhistas com os produtores de café, mas que faltam dados sobre quantos indivíduos estavam sendo submetidos ao regime de escravidão.
No Brasil, a escravidão é definida como trabalho forçado, mas também inclui servidão por dívidas, trabalho em condições degradantes, trabalho por tempo excessivo que represente risco para a saúde e que viole a dignidade humana.
Em 2018, mais de 300 trabalhadores de plantações de café foram encontrados pelos fiscais em situação de trabalho escravo no Brasil, o maior número em 15 anos. A verdadeira extensão da escravidão no setor, porém, é desconhecida.
O Ministério da Economia respondeu em um comunicado que “não existem estatísticas confiáveis sobre o número potencial de trabalhadores em condição análoga à de escravo em nenhuma atividade econômica”, quando questionado se a escala de abusos trabalhistas no setor cafeeiro do país era subestimada.
“Somos um grande produtor mundial, e a quantidade de abusos identificados não é proporcional à nossa produção”, disse o juiz federal Carlos Haddad, que coordena um programa de assistência jurídica às vítimas de escravidão moderna em Minas.
Sem dinheiro, pessoal e apoio técnico
De acordo com dados dos EUA, o consumo mundial de café deve atingir um recorde em 2020, e o Brasil responde por mais de um terço da oferta global. O país exportou cerca de 18 bilhões de reais em café em 2018, segundo dados comerciais das Nações Unidas.
O deputado Helder Salomão (PT-ES), chefe da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, alertou que o Brasil tem muito a perder se não houver ação efetiva.
“Ou resolvemos este problema, ou mais trabalhadores vão perder a dignidade, enquanto a gente perde oportunidades comerciais”, disse Salomão. “Daqui a pouco o Brasil vai ter prejuízos por causa disso”.
Estatísticas compiladas por um procurador do trabalho e entregues à Thomson Reuters Foundation mostram que 121 fazendas foram investigadas nas regiões Sul e Centro-Leste de Minas Gerais desde abril de 2014.
Violações trabalhistas foram identificadas pelos fiscais em 10 fazendas certificadas pela Rainforest ou pelo Certifica Minas, levantando dúvidas sobre a eficácia de selos que induzem a adoção de preços mais altos.
“As certificadoras sabem que há sérios problemas de não conformidade em cadeias de suprimento certificadas”, disse Genevieve LeBaron, professora de política da Universidade de Sheffield, no Reino Unido, que realizou um estudo sobre as condições de trabalho em plantações de chá certificadas na Índia.
“Consumidores acreditam que quando eles pagam 2 dólares a mais por café certificado, este dinheiro está sendo dado para os trabalhadores, quando quase não existe evidência de que isso ocorre”.
Acadêmicos e ativistas afirmam que é provável que a escala de trabalho escravo em todo o estado de Minas Gerais seja significativa e, em grande parte, invisível.
O Estado possui pelo menos 119.000 plantações de café e centenas de milhares de trabalhadores, mas apenas 245 auditores-fiscais.
“Faltam recursos, apoio técnico e equipes”, disse Adriano Santos, professor de sociologia da universidade local, UNIFAL-MG, que estudou o setor cafeeiro do Estado.
Ele afirmou que o cenário real é de “dramático” abuso dos trabalhadores.
Fora do radar
As autoridades trabalhistas em Minas Gerais, e em outros Estados, estão preocupadas com a queda no número de indivíduos resgatados da escravidão.
No ano passado, foram resgatados 1.154 trabalhadores de todos os setores, contra 2.604 em 2012, segundo dados do governo.
Em abril, juízes e auditores-fiscais do trabalho afirmaram em sessão no Senado que a Auditoria Fiscal do Trabalho, o principal órgão governamental na luta contra a escravidão e infrações no local de trabalho, está em um estado “calamitoso”.
Diante de uma profunda recessão em 2017, o governo anterior cortou cerca de metade da verba para inspeções trabalhistas, provocando uma queda acentuada no número de trabalhadores resgatados.
Associações de trabalhadores e grupos antiescravidão disseram que também estão atentos ao presidente Jair Bolsonaro, que, no início deste ano, declarou que o trabalho infantil não é prejudicial e reclamou que a definição legal de trabalho escravo nas leis brasileiras é muito ampla.
Diante deste cenário, a principal procuradora antiescravidão do país afirmou que, no ano que vem, o órgão que dirige irá direcionar os esforços para alguns setores – e o café possivelmente será um deles.
“Dadas as limitações financeiras, a carência de pessoal e o tamanho do nosso país, tanto nós quanto os auditores precisamos atuar de forma planejada e estratégica”, disse Lys Sobral Cardoso, recém nomeada para o cargo de coordenadora do Conaete.
Embora a mecanização tenha aumentado a produtividade, substituindo homens por máquinas, a diminuição no número de empregos disponíveis pode ter agravado a exploração dos trabalhadores.
Estima-se que mais de dois terços dos trabalhadores em fazendas de café no Estado de Minas Gerais sejam informais, sem direito a um salário mínimo, pagamento de horas extras, seguro desemprego ou outros benefícios.
“Com a mecanização, diminuiu muito a quantidade de trabalhadores”, disse Jorge Ferreira dos Santos, um dos diretores da CUT no Estado. “Mas precarizou mais, porque eles se submetem a condições piores por ser o único trabalho que encontram”.
O uso de mão de obra não registrada está profundamente enraizado e é comum na indústria cafeeira, alimentando a exploração generalizada do trabalho, disse Paula Nunes, advogada da organização sem fins lucrativos Conectas Direitos Humanos, que luta contra o trabalho escravo.
“A falta de registro torna muito difícil de monitorar quem eles são e de onde vêm. Eles não têm nenhum dos direitos… garantidos pela legislação trabalhista”, afirmou Nunes.
“(Mas) algumas empresas preferem fechar os olhos para isso”.
Operação de Resgate
Dezenas de trabalhadores encontrados em uma plantação na operação de agosto – na fazenda Alvorada do Canta Galo – contaram aos auditores-fiscais do trabalho que o proprietário não lhes forneceu equipamentos de segurança, comida ou água.
“Com o que a gente ganha, não tem condição de comprar (botas)”, disse Maria Helena Marques, de 55 anos. “A gente paga aluguel, paga bujão (de gás), feira, água, energia. O que sobra? Eles não dão nada”.
Mais de 50 trabalhadores encontrados na Canta Galo foram considerados vítimas de trabalho escravo pelos auditores-fiscais. Procurado, o proprietário da fazenda, José Maria Domingos da Silva, não quis comentar o caso.
Dias depois, para evitar o risco de ser processado, ele fez um acordo com os procuradores – o pagamento de uma multa ao Estado e indenização às vítimas, e a promessa de melhorar as condições de trabalho.
Os trabalhadores contaram que recebiam 14 reais por 60 litros de grãos colhidos, sendo que para alguns isto representa um dia de trabalho.
Uma das mulheres recebeu 672 reais por 43 dias de trabalho, ou cerca de 2 reais por hora. Os auditores encontraram muitos outros empregados que estavam recebendo menos do que um salário mínimo, de 998 reais por mês.
Os indivíduos resgatados moravam em Campos Altos – uma cidade vizinha que abriga centenas de trabalhadores sazonais do café, vindos do Nordeste – a maioria em barracos sujos e minúsculos, sem camas ou geladeiras.
“A gente recebe muito pouco”, disse Sales Félix, que divide um quarto com a esposa e duas filhas ao lado de outro quarto com três homens, e pelo qual paga cerca de 300 reais por mês. “A gente sai de longe, pra não produzir nada”.
Lista suja
Os sistemas de certificação da indústria, usados para garantir aos consumidores que as mercadorias são livres de trabalho escravo e não prejudicam o meio ambiente, estão sob suspeita em Minas Gerais, uma vez que fazendas certificadas como seguras foram punidas por não cumprirem os padrões.
Muitas fazendas de café entraram na “lista suja” do governo, que divulga os nomes dos empregadores envolvidos na escravidão contemporânea, uma das mais fortes ferramentas contra o trabalho escravo do Brasil, já que as empresas presentes nela não podem obter empréstimos em bancos estatais ou qualquer outro dinheiro público.
Na mais recente lista suja, divulgada em agosto, 18 das 190 empresas eram produtoras de café: 13 com sede em Minas Gerais.
O setor cafeeiro foi superado apenas pelo da pecuária no número de empresas listadas no registro.
O Cecafé, o mais importante conselho de exportadores de café do Brasil, com 120 membros, não se pronunciou sobre os problemas encontrados no setor, e simplesmente listou as medidas antiescravidão que adotou.
“Responsabilidade social e a sustentabilidade são aspectos fundamentais em todo o agronegócio do café brasileiro”, disse um porta-voz.
A fazenda de Domingos – inspecionada pelos auditores – abastece a Nucoffee, parte da gigante do agronegócio Syngenta, que informou que adquire grãos de 4.000 fazendas e ajuda os produtores a venderem no exterior.
A Nucoffee disse que Domingos havia assinado um acordo com os procuradores do trabalho prometendo melhorar as condições de trabalho, mas que “seguirá acompanhando o caso para avaliar providências cabíveis”.
Fazendas que utilizaram mão de obra escrava correm o risco de sofrer multas oficiais que podem exceder 1 milhão de reais, responder por indenizações legais, ou receber notificações judiciais determinando a melhoria das condições de trabalho.
Aqueles que fazem acordos com os procuradores – prática comum para evitar processos judiciais – enfrentam sanções se forem pegos novamente.
“A Nucoffee repudia práticas que contrariam o trabalho justo e tem compromissos claros no que toca o respeito ao trabalhador rural”, afirmou um porta-voz. Se Domingos for incluído na “lista suja”, a Nucoffee disse que irá romper seus negócios com o fornecedor.
O empresário também foi fornecedor da Nespresso até março de 2018, quando o relacionamento comercial terminou depois de uma análise dos fornecedores, realizada pela empresa.
“Trabalhamos com produtores que buscam melhoria constante em seus processos, além daqueles que são certificados pelas Rainforest Alliance”, disse um porta-voz da Nespresso, sem revelar as razões para o fim do contrato.
Este ano, a Starbucks rompeu com uma fazenda certificada pela Rainforest, que foi adicionada à “lista suja” em abril, depois que 25 trabalhadores foram encontrados por fiscais em condições de escravidão.
“Temos tolerância zero com qualquer forma de trabalho escravo e abordamos … fazendas a respeito deste tópico”, disse um porta-voz da Starbucks.
Sem saída
A Rainforest certifica centenas de plantações de café em Minas Gerais através de um sistema de “certificações de grupos”, apesar de inspecionar apenas uma fração dessa coletividade de fazendas.
Em 2017, uma fazenda endossada pela Rainforest foi condenada pelas autoridades por explorar trabalhadores que eram forçados a fazer horas extras ilegais.
A Rainforest afirmou que seu sistema de certificação de grupos é “forte e eficiente”, mas que estava considerando uma mudança para garantir que todas as fazendas sejam auditadas pelo menos uma vez a cada três anos.
“Acreditamos que certificação é uma ferramenta essencial para solucionar… desafios trabalhistas em campo…”, afirmaram em um comunicado.
“(Mas) um sistema de certificação sozinho não é suficiente para alcançar a mudança que buscamos no campo. Precisamos que governos, empresas e outros stakeholders participem de forma significativa”.
Em Campos Altos, os trabalhadores da fazenda de Domingos ficaram satisfeitos em receber do ex-chefe uma compensação de até 15.000 reais, cada um, e três meses de seguro desemprego do estado.
Um trabalhador de 36 anos disse por telefone que recebeu R$ 7.500 depois de seu resgate e comprou um pequeno terreno na Bahia.
“Foi bom porque a gente descobriu que tinha direito a alguma coisa”, disse ele. “Se Deus quiser, vamos construir uma casa”.
No entanto, a atitude predominante entre os trabalhadores resgatados nas operações de agosto – a maioria dos quais pediu para permanecer no anonimato por medo de não encontrar mais trabalho no futuro – foi de resignação.
“É difícil não vir (para a colheita)”, disse Joseilton de Jesus, que planeja voltar à região para trabalhar no próximo ano, apesar de ter sido explorado como escravo. “A gente precisa ir pra onde tem trabalho”.