“Carnezinho gostoso” do Magazine Luiza (MGLU3): o que está por trás dos carnês?
Há aproximadamente duas semanas, Luiza Trajano, presidente do conselho do Magazine Luiza (MGLU3), viralizou ao praticamente implorar que o consumidor fosse a uma de suas lojas e fizesse um “carnezinho gostoso”.
“Você que tem vontade de comprar um computador pro seu filho, uma TV maior pra ver a Copa do Mundo ou outras coisas… Não importa. Panela, brinquedo. É só você procurar uma das nossas lojas (…) Lembra aquele carnezinho gostoso? Com prestações que você pode pagar. Vá o mais rápido possível em nossas lojas. Por favor!”.
É verdade que as ações do Magazine Luiza caíram bastante ao longo dos últimos meses. As ações, que subiram mais de 35.000% entre 2016 e 2021, garantiriam R$ 35 mil reais para quem tivesse investido R$ 100.
No ápice, uma ação chegou a valer R$ 27,34. De maio para cá, não houve um dia sequer em que a ação foi negociada a mais de R$ 4. O desespero de Luiza Trajano se justifica.
Mas, em plena era de cartões, cashback e compras sem juros, por que resgatar o carnê? O carnê ainda está na cultura do brasileiro?
O que é o carnê?
Talvez quem tenha nascido nos anos 2000 ou já tenha adotado o cartão de crédito por completo desconheça o que é um carnê.
O carnê nada mais é que um crédito disponibilizado pelas lojas aos clientes: você se dirige ao ponto de venda, escolhe o produto e, em vez de pagar com cartão, recebe um pequeno livreto (hoje também em app) com as parcelas a serem pagas mensalmente. Algumas negociações podem ser feitas a perder de vista.
Por que o carnê tem tanto apelo?
São vários motivos que fazem com que o carnê seja um belo negócio – muito mais para quem vende do que para quem compra.
- Políticas de crédito diferenciadas: quando não havia algoritmos, big data e toda a estrutura hoje existente para mitigar riscos na oferta de crédito, o que realmente contava era o comportamento do cliente. Ou seja, o lojista não precisava ganhar o cliente necessariamente pelo preço, mas sim pelo crédito. Uma determinada loja poderia cobrar 10% a mais por um produto em relação à loja B, mas se a cliente tivesse crédito na primeira, por conta de sua fidelidade, e não na segunda, o negócio era fechado com a primeira.
- Convite mensal a novas compras: com o pagamento feito também nas lojas, há uma parcela de clientes que volta todos os meses para quitar a parcela em aberto. Cada retorno, no entanto, é uma nova propensão à aquisição de outro item. Essa propensão aumenta na mesma proporção em que o carnê se reduzia.
- Parcelas que cabem no bolso: esse é um dos maiores perigos do carnê (como também de empréstimos e cartões). Lojistas criam condições que caibam no bolso do cliente, mesmo que ao término do período de pagamento ele tenha arcado com duas ou três vezes o valor da dívida original.
E os famosos juros?
Cobrar juros não é ilegal, muito menos imoral. O juro nada mais é que a remuneração que o credor requer para renunciar ao uso de determinado capital por um período.
Se alguém lhe oferecer a possibilidade de ganhar R$ 1 milhão hoje ou daqui a um ano, a sua opção tende a ser pelo hoje. Para receber só daqui a um ano, você espera ser remunerado por isso.
No caso do mercado, os juros ainda têm outras ponderações, como o risco. Raramente o credor fica no prejuízo, afinal o cliente adimplente paga também pelo inadimplente.
Juros altos não são uma novidade na história do Brasil. As denúncias de abuso também não.
Na década de 70, sem um ano específico, o jornalista Carlos Brickmann deixou a redação do extinto Jornal da Tarde, entre a Major Quedinho e Martins Fontes, no centro de São Paulo. Seu destino era a Praça Ramos de Azevedo, onde havia o Mappin, mesmo endereço em que hoje estão as Casas Bahia.
Brickmann simulou a compra de um produto, que custava, por exemplo, R$ 100. Se adquirido à vista, teria desconto de 20%, ou seja, R$ 80. Mas se pago a prazo, os juros eram calculados sobre os R$ 100 – e não sobre os R$ 80 (que seria o correto).
Qualquer condição de parcelamento, já seria iniciada tendo como base um valor R$ 20 acima dos R$ 80, mesmo sem tempo algum decorrido que justificasse a cobrança dos tais R$ 20.
A matéria foi publicada com anuência de Ruy Mesquita, um dos herdeiros e responsável pelo jornal. Horas depois, as reclamações vieram: tanto do Comercial, já que o Mappin era o maior cliente do jornal, como da Associação dos Varejistas, habituada a tal expediente.
Todos pediram a cabeça do repórter. Mesquita manteve-o, afinal não havia erro algum na denúncia. Tal história está em “Jornal da Tarde: uma ousadia que reinventou a imprensa brasileira”, de Fernando Casagrande.
Pouco mudou de lá para cá. A loja mudou de nome, mas o comércio segue. E a prática também. A diferença é que, hoje em dia, também são incluídos seguros de vida, garantia estendida e uma série de penduricalhos que muitas vezes passam de forma incólume ao consumidor mais humilde.
Educação financeira
Convites como o de Luiza Trajano são uma tentação. Após dois anos de pandemia, retomada do emprego e da economia, não parece razoável que alguém queira trocar a TV por uma maior para ver os jogos da Copa do Mundo ou a novela?
Apenas com o mínimo de entendimento de educação financeira que o consumidor poderá fugir dessas armadilhas – ou ao menos estar plenamente ciente delas.
Em tempos difíceis, é possível que alguém precise recorrer a um carnê, mas é importante que se esteja ciente que essa é uma opção excepcional e que jamais deva ser considerada como uma prática recorrente de compra.
A situação trazida do Jornal da Tarde tem, por baixo, 50 anos. O Brasil vivia na época da ditadura militar. Mudamos de regime, de moeda, de governantes.
Evoluímos em costumes. Novas tecnologias surgiram. Mas não é razoável que, meio século depois, o “carnezinho gostoso” e suas pegadinhas estejam no rol de permanências históricas do nosso país.
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