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Caio Mesquita: Quem controla o passado, controla o futuro

05 mar 2022, 12:00 - atualizado em 04 mar 2022, 19:52
Caio Mesquita, Empiricus
“Não sei exatamente o teor, mas supus que o socorro estaria em conectar meu celular a um computador do mesmo fabricante, provavelmente restaurando seu sistema operacional”, diz (Imagem: Divulgação/Empiricus)

A tela do celular travou. Ansioso, aperto os botões laterais tentando tirar o aparelho de sua animação suspensa.

Após algumas tentativas sem resultado, termino apelando, forçando seu desligamento. Certa vez escutei de um técnico de computadores que 9 em cada 10 problemas de tecnologia são resolvidos com o botão de liga e desliga.

Parece que o meu problema é aquela décima exceção. Após ser ligado novamente, meu celular segue em estado crítico. Em sua tela aparece a imagem de um computador e de um cabo de carregador.

Não sei exatamente o teor, mas supus que o socorro estaria em conectar meu celular a um computador do mesmo fabricante, provavelmente restaurando seu sistema operacional.

Minha hipótese ficaria sem comprovação. Meu notebook parou de funcionar no dia anterior, no primeiro dia da nossa viagem de Carnaval à Bahia. 

Se não fosse a televisão da sala, estaria totalmente isolado de um mundo ameaçado pelas consequências da guerra no Leste Europeu.

O aparelho, o único da casa alugada para o feriado, é disputado. Minha posição minoritária é frágil, facilmente superada por três filhos e uma sobrinha.

Desacostumado com a desconexão forçada, busco refúgio na ampla biblioteca do meu anfitrião. Lá, nas estantes sobre a bancada da suíte que ocupávamos, encontro meu companheiro de Carnaval, o livro “1984”, o clássico distópico de George Orwell.

A profusão de acentos caducos (êle, fôsse, bôca, vêzes, contrôle, etc.) mostra a idade da antiga edição e me remete diretamente à primeira vez que li a obra-prima, quando peguei, adolescente, um exemplar de capa idêntica da biblioteca dos meus pais.

“Guerra é Paz

Escravidão é Liberdade

Ignorância é Força”

Sob os lemas do Ingsoc, o partido único que domina totalmente a sociedade retratada, o livro mostra um mundo deprimente em todas as suas dimensões.

A sopa aguada, o gin oleoso, o café que só se torna suportável com a adição de sacarina, o cigarro que mal segura o tabaco, os ambientes fétidos e abafados, as roupas ásperas. 

Inevitável contrastar o horror da ficção com o aconchegante ambiente do sul da Bahia que me acompanha durante a leitura.

O dia a dia da Londres retratada aparece no limite do suportável. O Grande Irmão, líder onipresente, vigia até o sono. Uma palavra subversiva sussurrada ao dormir pode condenar irreversivelmente o sonhador.

Nada restava ao protagonista Winston, funcionário público lotado no Ministério da Verdade, onde reescrevia notícias antigas sob orientação do Partido, a não ser prostrar-se diante da opressão. 

Em um mundo onde até o afeto entre pessoas é considerado traição, a vida de Winston muda com seu encontro com a jovem Julia.

Não irei aborrecê-lo com mais detalhes sobre a obra, atualíssima apesar de escrita em 1948. Sua leitura hoje é obrigatória, independentemente se você já tiver lido o livro ou não.

Termino o livro em um dia e meio, compartilhando três destaques atualíssimos.

Seguimos num mundo permanentemente em guerra (“Guerra é Paz”). O horror a que assistimos hoje aflige os ucranianos, mas invariavelmente governos seguem se justificando com conflitos e antagonismo.

Criamos palavras politicamente corretas e cancelamos palavras politicamente incorretas, em linha com a Novilíngua de Orwell para imprimir um modo de pensar em linha com o esperado e o planejado. 

Dependemos das telas. Em “1984”, a teletelas são fixas, dominando as residências. Por elas, o Partido vigia, comanda, oprime. As nossas são móveis, estão em todo lugar e em todos os momentos.

De volta a São Paulo, deixo o livro na Bahia.

Como esperado, restauro meu celular e volto voluntariamente à minha teletela portátil.

Deixo você agora com os destaques da semana.

Boa leitura e um abraço,

Caio

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