Caio Mesquita: De boas intenções o inferno está cheio
A história é pródiga em exemplos de boas iniciativas que progressivamente se deterioram em situações desastrosas.
A socialização dos meios de produção, prevista em “Das Kapital”, de Karl Marx, pretendia reconstruir a sociedade em bases mais justas e igualitárias. Levamos quase um século e mais cem milhões de vítimas de regimes comunistas totalitários para perceber os malefícios da fraternidade vermelha.
A Lei Seca, que proibiu o consumo de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos durante a década de 20 do século passado, nasceu de um nobre objetivo. Afinal, o álcool era tido como a grande ameaça ao país.
Os argumentos em prol da emenda constitucional eram contundentes. A bebida era a principal causa de problemas domésticos, além de conduzir a comportamentos criminosos e violentos. O álcool também estava ligado a problemas de saúde, como o encurtamento da expectativa de vida, bem como a distúrbios psicológicos.
Proibir o consumo de bebidas tinha amplo apoio, inclusive de economistas proeminentes, que defendiam os ganhos econômicos para a sociedade americana de então. Irving Fisher, da Universidade Yale, elaborou estudos sobre o impacto negativo do álcool na produtividade do trabalhador americano. A “Blue Monday”, termo usado para descrever a depressão da ressaca posterior ao fim de semana, era citada como um peso para o desenvolvimento americano.
Já sabemos o que aconteceu em seguida. Há evidências de que o consumo de álcool não só continuou, mas aumentou com a sua proibição. A produção e a comercialização clandestina levaram a danos colaterais à saúde pública dada a baixa qualidade das bebidas consumidas. Também houve aumento notável da criminalidade e corrupção, com o crime organizado controlando os meios de distribuição.
A Lei Seca transformou toda uma população em criminosos, pois a proibição do álcool não modificou as preferências de consumo dos indivíduos. A insanidade foi finalmente corrigida em 1933, com a revogação da lei.
Por aqui, no dia em que escrevo esta newsletter, leio que deputados federais de três partidos de esquerda resolveram apresentar ao STF uma ação para proibir o governo de introduzir as novas cédulas de R$ 200.
Assim como na introdução da Lei Seca, os motivos são nobres. A disponibilização de notas de maior valor favoreceria a “ocultação, lavagem e evasão ilegal de dinheiro”.
A ideia é que o dinheiro na mão leva a sociedade a práticas ilegais e, portanto, deve ser coibido. A premissa é de que somos todos, incluindo você e eu e nossas respectivas mães, potenciais criminosos que somente com um Estado grande, presente e vigilante permaneceremos dentro da linha.
Medindo a todos por sua própria régua, políticos não se furtam da tentação do controle sobre o indivíduo como ferramenta para o aperfeiçoamento em busca da sociedade ideal.
A China praticamente baniu a existência de papel-moeda sob exatamente o mesmo pretexto. Por lá, virtualmente todas as transações financeiras são monitoradas e classificadas de acordo com os “melhores interesses da sociedade”.
Na mesma linha, e já que dinheiro não é tudo na vida, o comportamento de cada cidadão chinês é classificado conforme um marcador social (“social score”). Segundo o governo chinês, a conduta inadequada de indivíduos é uma ameaça ao bem comum e inibir maus comportamentos garante o aperfeiçoamento da sociedade. Obviamente é o próprio Estado e, no caso chinês, o Partido Comunista, quem tem a autoridade moral para definir os limites da conduta adequada.
Passando ao grande tema do momento, faz-se mister confrontar a ação das autoridades no controle da pandemia vis-à-vis a preservação dos direitos individuais.
Após meses de combate, os números de casos e óbitos seguem elevados em termos absolutos, porém até os mais alarmistas reconhecem que já ultrapassamos os risco de uma explosão das fatalidades por Covid-19.
Gradualmente, estamos recuperando nossas liberdades individuais que foram temporariamente suspensas, voluntariamente ou não, para combater a ameaça viral.
Governos, porém, invariavelmente são rápidos em concentrar poder e lentos em devolvê-lo. Aqui no Brasil, o formidável esforço em prestar assistência para o enfrentamento da crise resultante das quarentenas está se transformando numa poderosa estratégia política eleitoral. Parafraseando o filósofo Luiz Felipe Pondé, o brasileiro das classes menos favorecidas está acostumado com a morte, mas não está acostumado com dinheiro no bolso. Seiscentos reais por mês faz muita diferença nos grotões do nosso país.
Outro caso que está me incomodando especialmente, e já tratei disso na semana retrasada, é a insistência em manter as escolas fechadas, com pouca perspectiva de reabri-las no curto prazo dependendo da vontade dos nossos governantes.
Somente no futuro descobriremos os verdadeiros danos aos nossos pequenos, que seguem privados do acesso ao ambiente escolar. Governantes, preocupados apenas com as próximas eleições, não serão responsabilizados por sua omissão no desenvolvimento cognitivo.
Vejo São Paulo gradualmente se abrindo e, ao que tudo indica, as escolas serão os últimos estabelecimentos a voltarem à normalidade. A quem pensa que as crianças estão respeitando o distanciamento social, convido a passear pelas periferias para encontrá-las na rua, expostas a perigos bem mais relevantes do que um vírus que tem baixíssima consequências aos mais jovens.