Bruno Marchesano: Xadrez às cegas
“[O tabuleiro de xadrez] é um mundo inteiro em 64 quadrados. Eu me sinto segura nele. Posso controlar, dominar. E é previsível. Se me machucar, a culpa é só minha.”
Essa frase foi dita por Beth Harmon, jovem prodígio do xadrez e protagonista da série “O Gambito da Rainha”, da Netflix, que é também minha recomendação cultural para o fim de semana.
Para os iniciantes em xadrez, o jogo reserva algumas similaridades com o conhecido jogo de damas: um tabuleiro quadrado com 64 casas claras e escuras alternadas, peças pretas e brancas para distinguir os jogadores e o jogador das brancas é o que faz o primeiro movimento.
As similaridades acabam aí. Damas são jogadas com 24 peças, enquanto o xadrez tem 32. E, diferentemente do primeiro, em que todas as peças seguem as mesmas regras, no xadrez cada uma tem a sua regra.
Essas diferenças fazem do xadrez um jogo muito mais complexo que o de damas. Em vez de apenas sete movimentos iniciais possíveis, no xadrez existem 20. Esses números aumentam conforme a partida progride.
Investir em fundos tradicionais como de renda fixa, multimercados, de ações ou cambiais é como jogar damas: apesar das diferentes possibilidades de estratégia, ao longo do tempo as regras são essencialmente as mesmas.
A tomada de decisão de investir em qualquer fundo sempre começa com as análises quantitativa e qualitativa. Seguindo a analogia, uma boa análise quantitativa pode definir quão bem o jogador consegue ler as jogadas passadas do gestor, identificar sua habilidade e ter uma ideia melhor da estratégia de seu jogo; já uma análise qualitativa diferenciada representa a profundidade com que você entende como o gestor pensa.
Nos últimos cinco anos, o número de ferramentas de análise quantitativa disponíveis se multiplicou e o investidor pessoa física já consegue fazer muita coisa por conta própria. Além disso, o acesso a relatórios de casas de análise, lives, podcasts e entrevistas aproxima o investidor dos grandes gestores, permitindo uma melhor análise qualitativa. Quando combinados com dedicação e diligência, o entendimento das estratégias do jogo e o conhecimento de seu oponente podem te fazer um ótimo jogador de damas.
Mas os juros estruturalmente mais baixos deixaram os investidores menos animados com os retornos desses fundos tradicionais. Isso abriu caminho para que uma classe de ativos bastante comum no exterior se tornasse o foco de desejo do brasileiro: o private equity, a compra de participação em empresas privadas, ou seja, que não são negociadas em Bolsa.
Esse investimento via fundos, até meados do ano passado, era praticamente exclusivo a grandes investidores estrangeiros, fundos de pensão, family offices, investidores institucionais e detentores de grandes fortunas. Nos últimos meses, temos visto cada vez mais produtos da classe sendo distribuídos em plataformas digitais, o que nos deixou felizes, mesmo que continuem restritos a investidores considerados qualificados (aqueles com mais de R$ 1 milhão em investimentos financeiros) ou para os profissionais (aqueles com mais de R$ 10 milhões) por conta da regulação da CVM.
Por mais que essa guinada para a pessoa física tenha nos agradado no começo, percebemos que os investidores estavam focando em dois fatores: i) retorno, com métricas diferentes dos fundos tradicionais, sem histórico público e ausência de padrão; e ii) senso de urgência, criando investidores desesperados e em busca de uma indicação às pressas, com medo de perder uma possível oportunidade por conta das janelas curtas de captação e das poucas ofertas disponíveis.
Um termo apropriado para o comportamento resultante desses fatores é FOMO (“fear of missing out”). O medo de ficar de fora pode levar as pessoas a tomarem decisões impulsivas e, muitas vezes, ficarem cegas para os riscos existentes, como o de liquidez, pois, quando você investe em um fundo de private equity, o comprometimento costuma ser de quase uma década; ou seja, sem chance de resgate.
Mesmo quando está claro para o investidor o risco de liquidez, este continua sem perceber outros riscos existentes, porém ocultos, por assumir que as regras do jogo de investir em private equity são as mesmas das de investir nos fundos tradicionais.
Além da liquidez, os cálculos das taxas de administração e performance são diferentes do que estamos acostumados, sem falar da menor transparência e do pouco acesso ao histórico de retorno dos gestores. Soma-se a isso a ausência de marcação a mercado e o período de silêncio pelo qual as próprias gestoras precisam passar durante a captação do fundo, o que cria um terreno fértil para a assimetria de informação.
Esses exemplos são apenas uma gota de água no oceano de diferenças entre os fundos tradicionais e os de private equity. Se os primeiros são como um jogo de damas, facilmente aprendido e compreendido, o segundo se aproxima do xadrez.
Você já viu gestores de private equity fazendo live ou comentando suas posições no Twitter? Pois é, sem o acesso aos gestores e sem informações públicas completas de retorno, a conclusão só pode ser uma: o investidor está jogando xadrez às cegas.
Nada contra a modalidade em que o jogador disputa sem olhar o tabuleiro, apenas ouvindo os movimentos, mas, sem conhecer as regras, vencer fica bem mais difícil.
Nos últimos seis meses, desde que separamos uma pequena parcela da carteira principal da série Os Melhores Fundos de Investimento para private equity, temos atuado em três frentes.
A primeira é o combate ao FOMO criado em torno da classe. Você não quer tomar decisões para dez anos de forma precipitada. Em paralelo a isso, nos aproximamos das gestoras, aplicando nossa diligência profunda em busca apenas das oportunidades que pareçam as melhores da indústria e não aquelas que estão disponíveis no momento. E, por fim, oferecemos aos nossos assinantes didática e transparência sobre as diferenças entre as classes, riscos, tipos de análise e todas as informações que habilitam o investidor do varejo estar no mesmo patamar de informação de um investidor private.
Na última semana, o investidor recebeu um reforço de peso nessa última frente. A gestora de fundos de private equity Spectra, em parceria com o Insper e a Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCAP), divulgou um estudo que compara práticas adotadas por fundos da classe no Brasil com as melhores práticas mundiais recomendadas pela Institutional Limited Partners Association (ILPA).
Esse estudo vem em um formato bem didático e mostra o quão diferentes são os fundos de private equity, mesmo quando comparados entre si. Além disso, o estudo revela que os fundos da classe estão cada vez mais alinhados às melhores práticas globais, mas que ainda há divergências e pontos de atenção a serem observados.
Ao abrir um pouco seus olhos para essas diferenças e analisar melhor as ofertas que virão a mercado nos próximos meses, temos um único objetivo em mente: que você nunca mais jogue xadrez às cegas.
Afinal, essa não parece ser uma boa escolha para o seu dinheiro, não é?
Um grande abraço,
Bruno Marchesano