Opinião

Bolsonaro está certo em querer acabar com a quarentena? O que a ciência tem a dizer

05 abr 2020, 18:29 - atualizado em 05 abr 2020, 18:29
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Teste, Coronavírus, Hospital
Acontece que essa pandemia de agora traz consequências inéditas e, sendo assim, o conhecimento necessário para lidar com ela, em todo campo de pesquisa que seja, ainda está sendo construído (Imagem: Pixabay)

1. O que a ciência econômica tem a dizer?

Existem vários pesquisadores na área de economia da saúde que estudam a relação entre economia e epidemias – é o caso, por exemplo, de Raouf Boucekkine, que possui vários papers interessantes sobre os impactos econômicos da AIDS em países africanos.

Acontece que essa pandemia de agora traz consequências inéditas e, sendo assim, o conhecimento necessário para lidar com ela, em todo campo de pesquisa que seja, ainda está sendo construído.

É o caso do campo da economia. Não obstante, alguns estudos de economia já foram lançados analisando os efeitos econômicos e possíveis medidas a serem tomadas durante essa pandemia.

É o caso de um working paper lançado pela NBER há alguns dias [1], em que os pesquisadores analisaram os impactos macroeconômicos do Covid-19, utilizando-se para tanto de uma adaptação do modelo SIR [2] (acrônimo para suscetível, infectado e recuperado/removido), modelo que é canônico em epidemiologia. Os pesquisadores estudaram a interação entre decisões econômicas e a dinâmica epidemiológica.

O estudo chegou à conclusão de que “reduzindo interações econômicas entre pessoas, essas políticas (políticas de contenção que diminuem o consumo e as horas trabalhadas) exacerbam a recessão mas aumentam o bem-estar ao reduzir o número de mortos causados pela epidemia.

Nós encontramos que é eficiente introduzir medidas de contenção de larga escala que resultam em uma aguda, sustentada queda no produto agregado. Essa política de contenção ótima salva aproximadamente meio milhão de vidas nos EUA”.

Outro estudo [3] usou dados da gripe espanhola para verificar o custo-benefício de intervenções não-farmacêuticas (como quarentena, por exemplo).

O estudo concluiu que “cidades que intervêm mais cedo e mais agressivamente não têm um pior desempenho (econômico) e, na verdade, crescem mais rápido depois que a pandemia passa.

Nossos achados portanto indicam que intervenções não-farmacêuticas não apenas reduzem a mortalidade; elas também mitigam consequências econômicas adversas de uma pandemia”.

Ou seja, o que os dados mostram é que é falso esse dilema posto de vida versus economia: salvando mais vidas, menos a economia sofre.

1.1.Quais as políticas econômicas ideais para combater essa crise?

O economista Faria e Castro analisou [4] quais seriam as melhores políticas econômicas para se adotar nessa crise. Para tanto, ele utilizou de um modelo DSGE para analisar 5 diferentes tipos de intervenções fiscais durante o shutdown de serviços que está ocorrendo nessa quarentena: (i) compras do governo; (ii) cortes no imposto de renda; (iii) aumento nos benefícios de seguro-desemprego; (iv) transferência incondicional de renda para todos; (v) transferência de renda para firmas do setor de serviços.

O estudo concluiu que “a ferramenta mais efetiva para estabilizar a renda das famílias e o consumo dos tomadores de empréstimo no contexto de um choque exógeno que conduz ao shutdown do setor de serviços parece ser um aumento no seguro-desemprego.

No geral, programas que envolvem transferência de algum tipo para famílias parecem ser também efetivos. Transferências incondicionais são provavelmente menos custosas em termos de implementação, podem ser preferidas pelos poupadores, e entrega resultados mais ou menos parecidos. Assistência de liquidez para as firmas é efetiva em manter o emprego no setor quarentenado”.

A JP Morgan Chase publicou um estudo em que ela calculou quanto tempo as empresas aguentam ficar paradas, sem nenhum fluxo de caixa, apenas arcando com os custos fixos e semifixos.

O resultado é que o tempo médio de sobrevivência das empresas até entrarem em crise é de 27 dias. Restaurantes são os primeiros a entrarem em crise de liquidez, com um tempo médio de sobrevivência de 16 dias. Esses dados estão condensados na figura 3 do relatório [5].

Por isso é muito bem-vinda a proposta dos economistas Armínio Fraga, Vinicius Carrasco e José Scheinkman de conceder crédito para pequenas e médias empresas durante essa crise [6].

2. Alguns estudos em epidemiologia

Como argumentam Ferguson et al [7], há duas estratégias para se combater o alastramento do vírus: (i) supressão, que consiste em diminuir o número médio de pessoas que cada pessoa doente infecta (também chamado de número de reprodução, ou simplesmente R) para abaixo de 1, de modo que a doença se extinga com o tempo; ou (ii) mitigação, que consiste em diminuir a velocidade de propagação do vírus, mas sem diminuir o R para abaixo de 1.

Como pode ser visto na figura 3 (A) desse mesmo estudo, caso nenhuma intervenção fosse feita na Grã-Bretanha, um pico iria acontecer em maio desse ano naquele país.

Caso se adote uma estratégia de supressão durante cinco meses, o pico, de mesma intensidade, irá acontecer em novembro.

As simulações de Anderson et al [8] estão em consonância com as de Ferguson et al. Eles simulam que o pico da doença ocorre 3,5 meses depois do início das transmissões, caso nenhuma medida de contenção seja feita, e 9 meses depois caso ocorra ressurgência da doença.

Atkeson diz que “a principal mensagem derivada das simulações desse simples modelo SIR da evolução do Covid-19 nos EUA (e provavelmente no mundo inteiro) é que provavelmente vai se requerer medidas de distanciamento social severo por um ano inteiro ou até 18 meses (até que uma vacina possa ser desenvolvida) para evitar consequências severas na saúde pública” [9].

O mesmo Atkeson, nesse mesmo estudo, faz várias simulações do que acontece com vários cenários diferentes de R. Em uma dessas simulações, ele averigua o que acontece se esforços de mitigação severos são impostos de forma temporária (por alguns meses) e então gradualmente relaxados.

O modelo prediz que uma vez que os esforços de mitigação são relaxados, a doença retorna sua rápida progressão, alcançando um pico 450 dias depois dos primeiros esforços de mitigação. Preocupante? Sim. Mas em outra simulação ele calcula o que ocorre se aprendermos a diminuir o R e mantê-lo em níveis baixos. No cenário mais otimista, passados 550 dias, menos de 25% da população se infecta.

Wang et al estimaram que, através de esforços para mitigar o contágio, como lockdown, houve uma redução gradual do R em Wuhan, inicialmente de 3,1 para 2,6, e então para 1,9, para finalmente ficar em algo entre 0,9 e 0,5, valor suficiente para extinguir o número de pessoas doentes com o tempo [10].

Manter o R baixo é o segredo. E para isso nós precisamos de tempo. É o que argumenta Tomas Pueyo em seu brilhante texto “O Martelo e a Dança”, traduzido pelo pessoal do Altruísmo Eficaz [11].

Nesse texto, Pueyo argumenta que o fator tempo é fundamental nesse momento. A escolha não é entre um pico forte agora e um pico forte depois, mas sim entre um pico forte agora e, caso consigamos controlar a doença, mantendo o R por volta de 1, nenhum pico depois.

É o que a China e a Coreia do Sul estão fazendo nesse momento: elas tiveram um alastramento forte da doença, mas então conseguiram controlá-la, e agora o número de novos casos está em declínio nesses dois países [12].

Para isso, eles tiveram que fazer uma quarentena inicial, mas agora as pessoas já estão relativamente livres para circular.

A estratégia adotada por esses países agora é a de fazer testes massivos, isolar os casos positivos e rastrear o máximo possível as pessoas cujos casos positivos tiveram contato.

Essa estratégia vai dar certo? Ainda estamos para ver. O futuro desses dois países vai determinar o futuro dos demais. Hellewell et al [13] não trazem conclusões tão otimistas.

Eles determinaram as condições nas quais o isolamento de casos positivos e o rastreamento de contatos seria suficiente para evitar um novo surto de coronavírus na ausência de outras medidas de controle.

Eles encontraram que em cenários muito plausíveis, somente essas medidas seriam improváveis de controlar a transmissão em um período de 3 meses.

3. Bolsonaro está certo em querer acabar com a quarentena imediatamente?

Dito tudo isso, resta a pergunta acima. Cabe ressaltar que a ciência não faz juízo de valor, e portanto nada tem a dizer sobre o que deve ser feito.

Ocorre que ela é a melhor ferramenta para tentar entender o mundo, e portanto negar seus achados durante as tomadas de decisão pode trazer consequências desastrosas.

Bolsonaro, ao propor a saída imediata da quarentena, está indo contra os achados de todos os especialistas, sejam eles virologistas, epidemiologistas, sanitaristas, médicos ou até mesmo economistas.

As pesquisas em economia mostram que uma quarentena agora é melhor para o bem-estar. As pesquisas em epidemiologia dizem que medidas de supressão agora têm sucesso, mas a doença muito provavelmente retorna meses depois.

Bolsonaro, ao propor a saída imediata da quarentena, está indo contra os achados de todos os especialistas, sejam eles virologistas, epidemiologistas, sanitaristas, médicos ou até mesmo economistas (Imagem: REUTERS/Ueslei Marcelino)

Mas esses resultados devem ser tomados com um grão de sal porque eles não levam em conta o aprendizado da sociedade em controlar o R. Bolsonaro, querendo acabar com a quarentena agora, vai diminuir o bem-estar da população e fazer a doença se alastrar.

O tal isolamento vertical que ele defende, de isolar apenas os grupos de risco, nunca foi tentado no mundo (até foi ensaiado pelo governo britânico, mas abandonado tão logo o número de casos evoluiu exponencialmente), e vai contra o conselho dos especialistas, que defendem um isolamento horizontal [14].

Ademais, ele está indo na contramão de todos os líderes mundiais cujos países foram afetados por essa doença [15]. Tais líderes estão se pautando pela palavra dos especialistas, Bolsonaro está se pautando pelas vozes de sua cabeça, e provavelmente também pelo lobby dos empresários míopes.

O argumento de que a quarentena vai destruir a economia, como já visto, é errôneo, uma vez que não tomar medidas de contenção é ainda pior para a economia, é o que o estudo linkado em [3] argumenta. O que deve ficar claro é que a recessão já está dada, ela é um fato.

A gripe espanhola, por exemplo, teve uma taxa de mortalidade de 2% e diminuiu o PIB em 6% e o consumo em 8% [16].

O que deve ser feito agora é tomar medidas que minimizem a crise, ponderando juntamente com elas o número de vidas salvas.

Quanto mais tempo ficarmos em quarentena, maior os custos econômicos dela. Mas como visto, dois países tiveram um surto grande inicial, entraram em quarentena, e agora as pessoas estão relativamente livres para ir e vir.

A quarentena inicial é, portanto, uma medida mais do que necessária. Querer acabar com ela justamente agora é de uma irresponsabilidade tremenda.