Alexandre Vasarhelyi: quem serão os verdadeiros ganhadores do embate monetário pós-coronavírus?
A pandemia começa a perder forças na Europa e na América do Norte, então o momento é oportuno para determinar quais foram as moedas vencedoras nesta crise.
Do time das fiduciárias, temos o trio dólar, iene e franco-suíço, abrindo corpos de vantagem sobre as demais, especialmente sobre as moedas de países emergentes. Do time das “outside money”, não podemos deixar de comemorar o desempenho do ouro, mostrando por que é reserva de valor há três mil anos.
Compondo o time, mas bem mais novo e controverso, o bitcoin atravessa a sua primeira grande crise com boa valorização, mas em um nível muito superior de volatilidade. Como o critério é performance, nada mais justo deixar o “enfant terrible” dividir o pódio com esses quatro ícones da categoria.
Neste momento, os puristas vão dizer que o bitcoin não é uma moeda, apenas uma abstração matemática, e neste ponto, vou ter que concordar. Mas como sou um apaixonado por essa nova tecnologia, me permitam a licença poética. Prometo endereçar essa questão “técnica” ao final deste texto.
Vimos que a demanda pelo trio “safe heaven” das fiduciárias foi tão grande que todos os seus bancos centrais tiveram que ligar as impressoras na velocidade máxima, com emissões sem precedentes na História, inclusive maiores e mais rápidas que em 2008.
A contrapartida é que seus balanços inflaram bastante — o que por si só não é defeito, mas sim qualidade. Qual banco central não gosta de ver a sua moeda funcionando como porto seguro em épocas de crise? Ou, colocando em outras palavras, qual empresa não gostaria de ter um produto que vende como pão quente quando a batata assa?
A escolha da moeda é uma decisão relativa ou uma procura pela “cleanest dirty shirt”. Então, os méritos desse grupo não são valores absolutos, mas apenas uma situação relativa confortável.
Quando uma pessoa compra uma moeda, ela necessariamente vende a outra, gerando um fluxo cambial, o que não é novidade para países menos desenvolvidos, já acostumados com a fuga de capitais em tempos de crise. Desta vez não foi diferente. Talvez a única surpresa tenha sido a velocidade e intensidade do movimento.
Gostaria de detalhar a dinâmica desse fluxo. Um investidor que vende a sua moeda para comprar dólares cria uma demanda por dólares que “força” o Fed a fazer linhas de swap com diversos bancos centrais do mundo, ou emitir dólares para suprir esta nova demanda.
Atualmente o Fed, por meio do afrouxamento quantitativo (QE, na sigla em inglês), consegue injetar dólares diretamente na economia com compras massivas de títulos do tesouro americano em posse do mercado.
Por sua vez, o vendedor desses títulos recebe dólares na sua conta e, como é um investidor conservador, busca por outros ativos de risco baixo, como o franco-suíço.
Com o aumento da demanda por francos-suíços, o Banco Central da Suíça faz intervenções no mercado de câmbio — parecido com o que é feito no Brasil, mas em sentido oposto — e troca sua moeda por dólares americanos, aumentando as reservas suíças.
Com posse desses dólares, o Banco Central da Suíça compra ouro, títulos do tesouro americano e, por incrível que pareça, ações da bolsa americana.
Nesta crise, o BC suíço comprou US$ 22 bilhões em ações americanas, dentre elas Apple, GE, Disney e Aurora Cannabis. Ou seja, o BC suíço é um dos maiores fundos de hedge do mundo, acompanhado do BC japonês que, há décadas, já compra ações e, hoje, é um dos maiores investidores da bolsa japonesa.
Esse é um motivo a mais que ajuda na performance da bolsa americana. Quem tem moeda forte, tem também uma enorme vantagem competitiva sobre as outras economias.
Isso significa que, se existem três moedas ganhadoras, também existem 177 perdedoras. É justamente esse equilíbrio que vamos explorar no restante do texto.
Uma grande diferença entre essas três moedas é que, o país de duas delas não tem exército, enquanto a outra tem o maior exército do mundo. Existe quem acredite que o Estado capturou a moeda para financiar as guerras.
Isso foi verdade nos séculos passados e talvez continue até os dias de hoje, mudando apenas o estilo de guerra que se trava. Não acredito que a relação seja assim, tão direta, mas é importante lembrar que moeda forte também é uma vantagem geopolítica importante.
Perder recursos durante uma crise promove um desequilíbrio econômico, que gera um aumento no risco e queda na produtividade. Então não é à toa que vários presidentes americanos já afirmaram que ter uma moeda forte é de interesse dos Estados Unidos.
O bitcoin nasceu após a crise de 2008 para servir como uma opção de moeda para essa tentativa dos bancos centrais em gerar crescimento por meio da expansão monetária. Ou seja, é exatamente o cenário que estamos vivendo.
Uma grande vantagem competitiva do bitcoin é que, nele, a derrota da minha moeda não é vitória da moeda do meu competidor (característica igual ao ouro e, por isso, compõe time das “outside money”).
Alguns países já se deram conta dessa vantagem e, talvez por isso, sejam mais favoráveis ao uso do bitcoin — entre eles, Suíça e o Japão. Notem aqui como as coisas vão se entrelaçando.
Do outro lado, os Estados Unidos não se mostram muito interessados no uso ou no sucesso desse experimento monetário, o que me parece correto. Se eu tivesse um parque fabril enorme e um exército enorme, também não gostaria de perder o poderio monetário.
Acontece que veio a pandemia para reescrever as nossas relações de trabalho e, por que não, as nossas relações com o dinheiro. O trabalho remoto, o home office e o empreendedorismo conversam muito melhor com um ativo digital do que com a moeda antiga.
Não estou falando apenas do uso das notas de papel para o pagamento de pequenos serviços.
Imagine o pagamento dos “coronavouchers” se o Brasil já tivesse um real digital. Imagine a eficiência para o governo e para a economia se, em dez segundos, os 40 milhões de beneficiários recebessem os seus R$ 600 no seu celular ou no seu cartão-cidadão.
Também seria o fim das filas nas agências da Caixa e de seus riscos para a saúde justamente dos mais vulneráveis.
Falar sobre o mundo pós-pandemia é falar sobre a natureza das nossas relações interpessoais e é neste cenário que uma moeda digital deve ser entendida.
James Bullard, o presidente do Fed de St.Louis, falou que a teoria monetária admite a presença de uma “private coin” (moeda não emitida por um banco central) convivendo com as moedas fiduciárias.
A minha impressão é que, na era pós-COVID, o mundo vai tentar diminuir a sua dependência do dólar americano e o bitcoin — uma moeda privada que tem inflação controlada, decrescente e conhecida, que não é passiva de nenhum banco central — está muito bem posicionado.
Isso não é apenas uma teoria minha. No início do mês, o famoso investidor Paul Tudor Jones dedicou sua carta aos investidores para exaltar as vantagens do bitcoin e explicar por que seu fundo de US$ 22 bilhões está começando a acumular a moeda.
Então, após tudo isso, o bitcoin é uma moeda ou não?
Se usarmos qualquer métrica tradicional, certamente, não. Mas essa é uma visão míope. O ponto importante aqui não é o que o bitcoin representa hoje, mas sim o que ele pode vir a representar um dia.
Nós, da BLP, acreditamos que existem dois cenários em que o preço do bitcoin atingiria um equilíbrio representado pela queda significativa da volatilidade.
O primeiro, muito próximo ao zero, em que apenas um grupo muito pequeno de pessoas continuaria a sustentar a rede; o outro, em que um número muito grande de pessoas usasse o bitcoin para reserva de valor ou no seu dia a dia, e essa distribuição da (agora) moeda bitcoin atuaria no sentido de diminuir a volatilidade, mas em um preço muito mais alto do que o de hoje.
Então, se eu fosse definir o bitcoin, diria que, hoje, é uma opção de moeda, com volatilidade muito alta, convexidade muito grande e baixo custo de carrego.
Termino o texto tentando transmitir uma ideia que me levou algum tempo para assimilar: o valor do bitcoin não está na sua tecnologia. O valor do bitcoin está na sua rede de usuários, que enxerga, no ativo, uma forma de transação mais justa, simples e livre.
E é essa rede que vai continuar a criar o verdadeiro valor para a maior criptomoeda do mercado.
Alexandre Vasarhelyi, CFA é sócio da BLP Gestora e compõe o time de gestão dos fundos de criptomoedas. Se envolveu com ativos digitais no início de 2017, após mais de 23 anos na indústria financeira, onde trabalhou em diversas mesas proprietárias, dentre elas no Banco Indosuez, Credit Suisse, Deustche Asset Management, ING Bank e Banco Pine, onde foi responsável pela área de Tesouraria. Já operou ativos de renda fixa, variável, moedas, opções e commodities nos mercados locais e internacionais. Formado em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica, pós-graduado pela GV e com um curso de MBA pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais.