Alex Nascimento: blockchain, a tecnologia disruptiva ao mercado financeiro
Caro leitor,
Esta coluna tem o intuito de esclarecer conceitos técnicos e conceituais dos mais recentes avanços tecnológicos e produtos no mercado de criptoativos de um ponto de vista de investidores institucionalizados, tais como bancos, fundos e investidores profissionais.
Como uma coluna mensal, neste primeiro artigo, vamos cobrir o básico de como funciona um blockchain e por que essa tecnologia é tão disruptiva ao mercado financeiro.
Além disso, discutiremos a diferença entre criptomoedas utilitárias e criptomoedas de valor mobiliário, o que segrega a maioria dos produtos financeiros desta indústria.
Como blockchain funciona
A tecnologia blockchain foi desenvolvida por S. Haber & W. S. Stornetto em 1991. Tornou-se popular em 2008, quando Satoshi Nakamoto apresentou o Bitcoin Blockchain White Paper, propondo um protocolo de transações de moedas digitais, sem que ocorresse “double spending” (duplo gasto) e a necessidade de agentes intermediários.
Conhecida como uma tecnologia de base de dados organizada em blocos de informação, com registro de data e hora de execução, o blockchain pode armazenar dados de forma incorruptível e criptografada. Quatro características diferem o blockchain das demais tecnologias:
1. banco de dados distribuído: o usuário tem acesso e visibilidade das transações;
2. transações entre pares: cada usuário armazena e envia transações uns aos outros, sem a intermediação de bancos ou órgãos públicos;
3. razão digital, matemática e criptografia: automatizam os processos de transações, usando algoritmos criptográficos, para a confirmação e validação das operações e transações;
4. imutabilidade: as transações não podem ser alteradas. Estas são vinculadas e armazenadas em blocos de dados interligados, e copiados simultaneamente em diversos computadores.
De forma metafórica, blockchain é uma tecnologia de contabilidade distribuída (comparável a um livro contábil). Este livro contábil automatizado é compartilhado entre seus participantes (computadores/nós), recebendo atualizações conforme novas transações são validadas.
Isso permite que os participantes interajam e validem transações e acordos (troca de criptomoedas, ações ou títulos de propriedades) sem se conhecerem ou necessitarem de um intermediário. Assim, seguem as regras previamente estabelecidas entre as partes através de contratos inteligentes (smart contracts).
Em 2016-2017, o blockchain se mostrou muito útil para financiar startups e captar recursos via web, através da emissão de criptomoedas (ou tokens), dando início à era das ICOs (ofertas iniciais de criptomoedas).
Devido à febre das ICOs, onde bilhões de dólares foram arrecadados, órgãos regulatórios de valores mobiliários mundo afora começaram a criar regulamentações para essa indústria de fomento financeiro via blockchain.
Após uma mobilização grande de órgãos regulatórios de ofertas mobiliárias, como a americana SEC (Securities and Exchange Comission) e a brasileira CVM (Comissão de Valores Mobiliários), hoje em dia, a discussão sobre como atrair investimentos via blockchain gira em torno da seguinte pergunta:
Financiamento via blockchain: minha oferta de criptomoeda é um valor mobiliário ou uma moeda utilitária?
Frequentemente, me perguntam: “se eu fizer uma ICO, esta se qualificará como uma oferta de valor mobiliário ou um contrato de investimento que precisa estar em conformidade com a regulamentações da SEC?”.
Vale lembrar que os EUA representam aproximadamente 40% do mercado mundial de ações, derivativos e títulos de divida e, portanto, todo e qualquer investidor institucional considera a SEC como um fator crucial na suas estratégias de investimento.
Inicialmente, é importante destacar duas categorias de ofertas de criptomoedas (ou tokens), uma de utilidade (utility token) e outra de valores mobiliários (security token). Tokens representam um valor registrado em um blockchain.
Então, criptomoedas, ICOs, STOs (ofertas de security tokens), commodities, títulos de propriedade e ações digitalizadas podem ser considerados tokens!
Para esclarecer a diferença entre eles, podemos considerar um token de valor mobiliário como “ações da Disney”, emitido pela The Walt Disney Company.
Este é um ativo mobiliário negociável encontrado em Bolsas de Valores. Por outro lado, podemos considerar como um token de utilidade, o “Dólares da Disney”; uma moeda — não regulamentada — utilizada para comprar sorvete, ter acesso à roda gigante e outras atrações do complexo Disney.
Concluindo, tudo o que é relacionado a um contrato de investimento via blockchain e considerado um valor mobiliário tokenizado é denominado de security token. Já uma criptomoeda que dá acesso a produtos e serviços pode ser considerada um token utilitário, utility token.
Para identificar se uma oferta ou captação de recursos utilizando blockchain é ou não um contrato de investimento que necessita da aprovação de órgãos, como a CVM no Brasil, podemos usar como teste o caso da Suprema Corte dos Estados Unidos: Howey Test.
Esse caso estabeleceu o teste padrão para determinar se um acordo entre partes se qualifica como um contrato de investimento, que é uma espécie de valor mobiliário, para, então ser regulamentado pela SEC, CVM e demais órgãos governamentais que regulam transações financeiras.
O caso Estados Unidos vs. Howey, estabeleceu fundamentos para que um contrato de investimento se qualificasse como um valor mobiliário caso exista:
1. investimento de dinheiro;
2. investimento de fundos em uma empresa comum;
3. investimento com uma expectativa de lucros proveniente do esforço de terceiros.
Valor mobiliário pode ser entendido como um título de valor mobiliário, sendo um investimento financeiro negociável e fungível, que detém algum valor monetário.
Este pode representar ações em uma empresa de capital aberto ou privado, uma relação de credor com um órgão público ou empresa ou direitos de propriedade conforme representado por uma opção de compra.
Todas essas representações de valor em um blockchain são consideradas STOs, que nada mais são do que um valor mobiliário tokenizado (um contrato de investimento digital registrado via blockchain).
O Howey Test abrange diversas variações de um contrato, transação ou negócio, onde um investidor aplica dinheiro com a intenção de ganhar renda ou lucro com o uso desse ativo comprado (criptomoeda/token).
A comercialização de um token representando um investimento especulativo ou produto financeiro é considerado valor mobiliário nos olhos da Suprema Corte dos Estados Unidos, do FINRA e da SEC (e também da CVM).
Consequentemente, esse token será considerado um security token, baseado nas seguintes característica do token:
1. representa um participação acionária em uma entidade jurídica (Limitada, Corporação, Sociedade Anônima, etc.);
2. participação societária;
3. dá direito à participação nos lucros, perdas, ativos e/ou passivos;
4. status de credor;
5. representa um pedido de falência como detentor ou credor de participação acionária;
6. título de uma obrigação de reembolso por parte do sistema ou de entidade jurídica emissora de um token via blockchain;
7. característica que permita ao titular converter um token de utilidade (utility token) em um contrato de investimento.
Além disso, uma participação acionária em um fundo ou outra entidade jurídica que administra tokens de utilidade, também constitui a propriedade de um valor mobiliário.
Ou seja, em mercados como o Brasil e os EUA, um fundo que emite tokens está emitindo STOs e deve ser regulamentado.
Na emissão e oferta de uma criptomoeda, é crucial considerar como ocorre a venda. Se a linguagem para promover a moeda/token inclui palavras como “investimento”, “retornos” ou “lucros”, é muito provável que seja considerado uma STO.
Portanto, a essência de um token que representa valor mobiliário ou utilitário está relacionado ao uso: investimento vs. comercial, respectivamente.
No entanto, o token dar ou não direitos de voto pode confundir o investidor. A existência de direitos de voto não deve definir um token como valor mobiliário ou utilitário.
O foco deve ser se o detentor e/ou comprador do token seria visto ou não como aquele que pretende obter ganhos financeiros através dos esforços de terceiros.
Dado que o detentor de um token desempenhe um papel ativo ao utilizar, contribuir ou licenciar a plataforma, é menos provável que esse token seja considerado um valor mobiliário.
Logo, é de meu entendimento (atenção: não sou advogado e não desejo fornecer aconselhamentos jurídicos) que um token projetado adequadamente, que consiste em direitos e não inclui nenhum interesse de investimento não deva ser considerado uma oferta de ativo mobiliário.
Por outro lado, criptomoedas/tokens que possuem aspecto de um contrato de investimento devem estar em conformidade e de acordo com os regulamentos de órgãos, como a SEC e CVM, de mercados financeiros tradicionais.
A cautela é recomendada, visto que é necessário que apenas um investidor americano compre uma criptomoeda ou oferta de tokens para que a SEC force o emissor a cumprir com as leis de valores mobiliários americana.
Parece-me que a SEC, provavelmente, verá a grande maioria de ICOs como tokens de valor mobiliário, a menos que o emissor prove o contrário.
As agências reguladoras americanas tentarão proteger seus investidores de aplicações fraudulentas, tornando o emissor do ICO (estrangeiro ou não), responsável por estar de acordo com requerimentos da SEC.
Apesar do aparente risco jurídico de emitir um token que seja qualificado como oferta mobiliária irregular, várias jurisdições (inclusive a dos EUA) têm avançado na criação de regulamentação para essa nova tecnologia disruptiva.
No Brasil, a CVM lançou, no ano passado, uma audiência pública para a criação de um “Sandbox” brasileiro.
Sandbox será capaz de acolher e regular diversas fintechs, startups e projetos de grandes empresas direcionados ao desenvolvimento de novos produtos e serviços financeiros relacionados às novas tecnologias de inteligência artificial, realidade aumentada, Internet das Coisas e blockchain.
Sandbox será capaz de avaliar riscos aos projetos e processos de normatização e supervisão. Ao final das avaliações da CVM, as empresas poderão receber uma licença definitiva para operar seus produtos fintech, assumir a inviabilidade do projeto ou solicitar o adiamento das avaliações por mais um ano.
Para saber sobre STOs e outros criptoativos institucionalizados, recomendo o livro que escrevemos para nossas aulas de Blockchain e STOs na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA).
Nas próximas colunas, estaremos cobrindo diferentes produtos e serviços relacionados a esse mercado para você ficar à frente e poder acompanhar os últimos avanços tecnológicos e financeiros dessa indústria inovadora.
Alex Nascimento é professor de Blockchain & STOs na universidade americana UCLA e também é cofundador do UCLA Blockchain Lab. É autor do livro The STO Financial Revolution. Alex é um profundo conhecedor do mercado de valores mobiliários tokenizáveis e, neste artigo, tratou justamente sobre o panorama atual de STOs pelo mundo.