A suspensão da Moratória da Soja pelo Cade: entre litígios domésticos e a nova regulação europeia

A decisão liminar da Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), suspendendo a Moratória da Soja, marca uma atualização na relação entre acordos privados de sustentabilidade e o ordenamento brasileiro.
Pela primeira vez em quase 20 anos, o pacto voluntário firmado por tradings e associações é formalmente enquadrado sob a ótica concorrencial, acusado de restringir artificialmente o mercado e de impor custos desproporcionais aos produtores.
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A medida preventiva decorre do processo administrativo aberto contra a Abiove, a Anec e 30 empresas signatárias da moratória, que desde 2006 se comprometeram a não comprar grãos cultivados em áreas desmatadas do bioma Amazônia após 22 de julho de 2008.
Segundo o Cade, esse alinhamento de condutas configura indício de cartelização, com potenciais efeitos anticompetitivos e prejuízo à livre iniciativa.
Da origem ambiental ao questionamento jurídico
Criada em um momento de forte pressão internacional contra o desmatamento, a moratória representou, à época, uma resposta empresarial inovadora.
As tradings buscaram dar previsibilidade ao mercado externo e blindar a soja brasileira de barreiras comerciais. Não se pode negar que o pacto teve efeitos ambientais relevantes, sobretudo em um contexto no qual o Código Florestal ainda não havia sido reformado.
O problema, contudo, é que a moratória avançou sobre temas de competência legal, impondo um marco temporal absoluto de 2008 mesmo para desmatamentos legais e autorizados pelo poder público.
Enquanto o Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) admite hipóteses de supressão de vegetação em conformidade com autorizações ambientais, a moratória passou a invalidar tais permissões de desmate legal.
O resultado foi um crescente descompasso e conflito entre a regulação estatal e a autorregulação privada, com impacto direto sobre produtores que cumpriam rigorosamente a lei.
O conflito em Mato Grosso
Esse descompasso ficou evidente em Mato Grosso, maior produtor nacional de soja. Em 2024, o estado aprovou a Lei Estadual nº 12.709/2024, proibindo a concessão de incentivos fiscais a empresas que participem de acordos comerciais mais exigentes que a legislação brasileira.
A lei foi questionada no Supremo Tribunal Federal (STF) por partidos políticos na Ação Direta de Constitucionalidade 7.774, com concessão de liminar suspendendo a lei. Entretanto, em 2025, o ministro Flávio Dino restabeleceu parcialmente seus efeitos – a lei está em vigor.
Segundo Dino, a adesão empresarial à moratória continua válida, mas o poder público não está obrigado a conceder benefícios a companhias que imponham critérios não previstos na lei federal.
O reconhecimento do STF, portanto, reforçou a ideia de que a moratória não possui força vinculante perante o Estado e não pode se sobrepor ao Código Florestal como referência regulatória.
Esse caso evidencia como a disputa em torno da moratória extrapola a questão ambiental e ingressa na esfera da soberania legislativa e da segurança jurídica.
Para os produtores de Mato Grosso, a existência de dois padrões paralelos – um legal e outro privado – resultou em discriminação comercial, perda de competitividade e obstáculos no acesso ao crédito.
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A dimensão concorrencial: o olhar do Cade
Com a representação da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, o CADE passa a analisar a moratória não como política ambiental, mas como conduta concorrencial.
Segundo a representação, de acordo com o artigo 36 da Lei nº 12.529/2011, a Moratória da Soja pode configurar infração à ordem econômica, já que reúne concorrentes em um acordo que uniformiza critérios de compra e restringe o mercado ao excluir produtores que cumprem a lei.
Essa leitura faz parte de uma tendência global – autoridades antitruste têm reforçado que sustentabilidade não pode servir de escudo para cartelização.
A União Europeia e o Reino Unido já publicaram guias de “green agreements”, alertando que acordos ambientais só são admissíveis quando indispensáveis, transparentes e não excludentes. Nos Estados Unidos, a Federal Trade Commission adota posição ainda mais restritiva.
No Brasil, onde ainda não há previsão legal clara de isenção concorrencial por razões ambientais, o Cade demonstra seguir a mesma lógica: práticas potencialmente anticompetitivas não são legitimadas por eventuais benefícios ambientais.
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O EUDR e a perda de objeto da moratória
Paralelamente às disputas internas, um fator externo torna a moratória cada vez menos relevante: o Regulamento de Desmatamento da União Europeia (EUDR).
Aprovado em 2023 e com implementação plena a partir de 2026, o EUDR estabelece que soja, carne e outras commodities só poderão ingressar no mercado europeu se comprovarem não estar associadas a áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020.
A exigência europeia é mais recente e mais abrangente que a da moratória. Diferentemente do acordo voluntário de 2006, o EUDR tem força legal e aplica-se de forma uniforme a todos os exportadores.
Na prática, isso significa que as tradings precisarão atender ao marco de 2020, independentemente da continuidade da moratória. O pacto privado, portanto, perde objeto diante de uma regulação vinculante e internacionalmente reconhecida.
Implicações econômicas e políticas
A sobreposição de normas e acordos setoriais voluntários cria um ambiente de incerteza. Para os produtores, em especial de médio porte, a coexistência de um pacto privado, de um marco legal nacional e de uma regulação internacional representa custos adicionais e risco de exclusão do mercado.
Para as tradings, a suspensão liminar do Cade gera preocupação reputacional, mas também abre espaço para a construção de um modelo de governança baseado em regras públicas claras.
Do ponto de vista político, o episódio simboliza o avanço da estatização de padrões ESG: critérios que nasceram em pactos voluntários corporativos passam a ser internalizados em legislações nacionais e blocos econômicos, como o EUDR e a versão britânica da mesma norma.
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Conclusão
A suspensão da Moratória da Soja pelo Cade não significa o fim imediato do pacto, mas inaugura um ciclo de reavaliação. O histórico de conflitos em Mato Grosso e a decisão do STF já haviam sinalizado a fragilidade jurídica do instrumento.
Agora, com o EUDR impondo um marco temporal distinto e mais recente, a moratória parece se esvaziar, restando apenas como símbolo de um período em que empresas ocuparam o vácuo regulatório deixado pelo Estado.
O desafio brasileiro, daqui em diante, será harmonizar competitividade, legalidade e sustentabilidade em um ambiente de governança multinível.
Isso implica fortalecer o Código Florestal como referência interna, alinhar-se às exigências internacionais e evitar que acordos privados se transformem em mecanismos de exclusão econômica.
A decisão do Cade, nesse sentido, pode ser vista menos como ruptura e mais como realinhamento: o Brasil sai de um modelo de autorregulação corporativa e ingressa em uma era em que a regulação pública – nacional e internacional – define as balizas do jogo.
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