A pesquisa na indústria farmacêutica depende do governo?
Em artigo publicado no prestigioso periódico American Economic Review, Budish, Roin e Williams (2015) tentaram compreender por que os grandes laboratórios farmacêuticos focavam seus esforços para desenvolver tratamentos contra o câncer apenas para estágios muito avançados da doença. Eles notaram que havia um problema de proteção à inovação.
Pelas regras da agência de vigilância sanitária dos EUA (a Food and Drug Administration – FDA), um tratamento contra o câncer em estágios iniciais precisa cumprir testes clínicos que duram, no mínimo, 18 anos, uma vez que os desdobramentos da enfermidade nestes estágios podem ser muito variados e ter muitas implicações. Acontece que o registro da patente de 20 anos do novo medicamento deve ser feito logo antes de se iniciarem os testes clínicos, quando o conhecimento novo obtido pela pesquisa é revelado ao público.
Portanto, sendo 18 anos o tempo mínimo de duração dos testes, as empresas teriam apenas dois anos para usufruir seu poder de monopólio de forma a remunerar todo o esforço de pesquisa e desenvolvimento. Qual é o resultado desta “distorção” nos incentivos?
Como a duração mínima é de apenas alguns anos para estágios mais avançados da doença, os laboratórios preferem se concentrar nas descobertas mais lucrativas, diminuindo a oferta de inovações para estágios iniciais da doença, quando o tratamento tende a ser mais eficaz e, portanto, a salvar mais vidas, em particular das pessoas em pior condição econômica. Falhas de mercado como esta emergem do desalinhamento entre os lucros privados e os interesses coletivos.
Logo no início do mandato presidencial de Donald Trump em 2017, montou-se uma forte oposição dos laboratórios farmacêuticos norte-americanos contra a proposta do governo de cortar o financiamento dos Institutos Nacionais de Saúde (National Health Institutes – NHI) e a Fundação Nacional da Ciência (National Science Foundation – NSF) responsáveis pela pesquisa biomédica básica nos EUA.
Não deveriam os laboratórios ter ficado contentes com a tentativa do governo de reduzir a participação do Estado, abrindo espaço para que a iniciativa privada pudesse prosperar? A realidade é mais complexa do que nosso senso comum.
Um estudo do Centro de Integração da Ciência e Indústria (CISI) mostrou que, entre 2010 e 2016, todos os 210 medicamentos aprovados para serem comercializados saíram de pesquisas apoiadas pelo NIH (ver Cleary et al. 2018). Dos US$ 100 bilhões gastos nacionalmente nesse período, mais da metade – US$ 64 bilhões – foi canalizada pelo Estado para o desenvolvimento de 84 medicamentos de alta complexidade.
Todavia, os institutos nacionais de saúde não conseguem usar os lucros da venda destes medicamentos para financiar mais pesquisas. Os laboratórios financiados pelo Estado realizam anos de pesquisa básica para obter um grande avanço, que é então apropriado, modificado e patenteado pelos grandes laboratórios farmacêuticos que ganham bilhões com taxas de lucro de mais de mil vezes sobre o custo dos medicamentos desenvolvidos com dinheiro do contribuinte.
Por Paulo Gala e Andre Roncaglia. O texto faz parte do livro “Brasil, uma economia que não aprende”.
Referências
Budish, eric, benjamin n. Roin, and heidi williams. 2015. “Do Firms Underinvest in Long-Term Research? Evidence from Cancer Clinical Trials.” American Economic Review, 105 (7): 2044-85.
CLEARY, E., G., et al (2018) “Contribution of NIH funding to new drug approvals”, Proceedings of the National Academy of Sciences, March, 115 (10) 2329-2334; DOI: 10.1073/pnas.1715368115