A menina que denunciou o pai, a Índia e o desafio futuro do Brasil
Por Lucas Adriano, graduando do 9º período de Ciências Econômicas, na Universidade Federal de Viçosa (UFV), para o Terraço Econômico – “A menina de 7 anos que ‘denunciou’ o pai à polícia por não construir banheiro em casa”, foi uma manchete que descreveu um caso ocorrido em dezembro de 2018, na cidade de Ambur, localizada ao sul da Índia. A menina que fez essa inusitada denúncia se chama Hanifa Zaara e sua motivação é devida ao não cumprimento de uma promessa. O pai de Hanifa havia prometido construir um banheiro se ela fosse bem na escola. A menina acabou sendo a melhor aluna da turma mas, mesmo assim, o banheiro não foi construído.
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Interessante é observar que o caso de Hanifa não chamou tanta atenção da mídia brasileira – se o caso fosse de uma menina chinesa talvez o nível de atenção despendido fosse maior – e, mais do que isso, parece que o caso não foi observado com o enfoque apropriado. Houve muito foco na ação individual, enquanto que o contexto da situação, as particularidades e as contradições do país de Hanifa foram negligenciados.
A Índia é um verdadeiro gigante, tanto demograficamente – o país é o segundo maior em população e o sétimo maior em extensão territorial – quanto economicamente – vem crescendo de maneira acelerada, apresentado um grande crescimento do PIB real, da renda per capita e das exportações de bens e serviços, desde a década de oitenta.
O crescimento do PIB per Capita da Índia, por exemplo, é o que vem puxando o crescimento do indicador mundial, conforme gráfico abaixo:
Apesar de ser detentor de tamanha pujança demográfica e econômica, o gigante asiático ainda possui milhões de casos semelhantes ao de Hanifa, cuja diferença é que não foram denunciados para as autoridades policiais e que [praticamente] não vieram a público. São famílias que vivem em domicílios sem sanitários, situação nem um pouco rara na Índia, tanto que o país é o que detém o maior problema sanitário no mundo.
O expressivo crescimento indiano, que nominalmente possui relação com o tamanho da população do país, pode ser atribuído a reformas liberalizantes adotadas desde 1985. Essas reformas, que acabaram se intensificando a partir da década de noventa – especialmente a partir de 1991 – criaram uma série de medidas que abriram as fronteiras do país ao comércio exterior, promoveram a abertura para investimentos estrangeiros e puseram fim a uma ultrapassada política de substituição de importações. Além de permitir a modernização do sistema financeiro indiano, tais medidas deram fim a estagnação econômica do país.
Mas esse incrível crescimento econômico, que de maneira sustentada já perdura nas últimas duas décadas não se refletiu em questões simples de saneamento básico e em outros indicadores sociais, como o de escolaridade e o de expectativa de vida, por exemplo. A Índia é o país que possui o maior número de analfabetos dentre os membros do grupo dos BRICS, além de possuir uma expectativa de vida que não chega a 70 anos de idade, muito abaixo de países análogos em termos sócio-econômicos, como China, Rússia e Turquia.
Assim, a denúncia de Hanifa não foi apenas em relação ao seu pai, mas ocorreu acerca de todo o seu país. Uma nação que cresce como uma potência, mas que ainda possui problemas sociais de países em extrema pobreza.
E o que isso tem a ver com o Brasil?
Guardadas as devidas proporções, o Brasil atual apresenta certa semelhança com a Índia dos anos oitenta, dado que ambos os países haviam acabado de passar por uma enorme estagnação econômica se encontravam em uma trajetória econômica insustentável.
A expectativa, em grande parte cultivada pela plataforma liberal adotada pela campanha do atual presidente empossado, Jair Bolsonaro, flerta com o que foi realizado na prática pelos governos indianos. Uma pauta de liberalização da economia, desburocratizando diversos setores econômicos, promovendo um aumento na produtividade e reduzindo o gargalo dos gastos públicos.
Mas considerando que o Brasil atual realmente “abraçará” o que foi aplicado na Índia, cabe a seguinte indagação: será possível obter, a partir desse caminho, décadas de grande crescimento sustentado, sem no entanto ter problemas sociais tão críticos e persistentes?
Esse é um desafio para o futuro, mas que já foi denunciado por Hanifa.